
Literatura brasileira,
Ficções da vida real
Lilia Guerra constrói um quase-romance da geografia periférica em coleção de histórias com narrativas que se entrelaçam
01mar2025 • Atualizado em: 25fev2025 | Edição #91 marQuem tem medo das histórias que as periferias têm para contar? Se você não está preparado para se encontrar com você mesmo, com sua própria humanidade, é melhor evitar as 26 histórias dos muitos personagens desta coletânea. Porque Perifobia é sobre isso. Lilia Guerra nos leva pela mão e nos aproxima de universos íntimos de vidas que se cruzam, com uma linguagem — oral e escrita ao mesmo tempo — que vai direto ao ponto.
Lançado originalmente em 2018 pela editora Patuá e finalista do prêmio Rio de Literatura, em 2019, Perifobia ganha agora nova edição da Todavia. O livro é fruto da participação da autora em oficinas literárias e de textos e exercícios de escrita publicados em um blog (ainda ativo!).

Paulistana, filha, sobrinha e neta de Júlias, aos dez anos Lilia Guerrra se mudou para a Cidade Tiradentes. Eram os anos 80. Hoje, cerca de 200 mil pessoas vivem nesse bairro planejado na Zona Leste de São Paulo. “Um pedaço da metrópole onde filho chora e mãe não ouve. A trinta e cinco quilômetros do Marco Zero de São Paulo”, na descrição de uma das personagens do livro.
‘Os bairros da cidade têm que ser iguais em recursos. Esse conceito de nobreza tem que acabar’
Periferia, é preciso dizer, é um termo muito paulista, paulistano. As geografias urbanas afastadas dos centros de poder político e econômico nas cidades ganham nomes diferentes. No Rio, em Salvador ou Belém, a nomenclatura é outra. E Lilia Guerra fala de encontros e reencontros com realidades distintas, não de homogeneidades.
“A distância, aliada à escassez… sabe como é… [o termo] Perifobia é esse deboche por parte de quem vive em bairros considerados tradicionais, ‘nobres’, e demonstra esse comportamento que é, praticamente, de repulsa pelos lugares mais afastados. Lugares que não são de passagem”, me diz Lilia por email, quando pergunto sobre como é viver na Cidade Tiradentes, de onde ela não quer se mudar. “Os bairros periféricos vão continuar onde estão, não há o que fazer sobre isso. O que precisa ser priorizado, então, é o acesso. O zelo. A educação e saúde para o cidadão. A conscientização. […] Acho que, assim como as pessoas, os bairros das cidades têm que ser iguais. Se não em localização, em recursos. Esse conceito de nobreza tem que acabar.”
Tecelagem
O deslocamento da Vila Mariana, onde morava com a mãe e a avó, para a Cohab de Cidade Tiradentes fez a menina que gostava de palavras, livros e bibliotecas prestar mais atenção nas vidas ao redor e a querer registrá–las. A começar pela história de sua mãe, narrada em Amor avenida, seu primeiro livro, publicado de forma independente em 2014 e reeditado pela Patuá em 2022.
Mais Lidas
Perifobia não é um romance, dizem os mais rigorosos, mas uma coleção de histórias, contos e crônicas. Mas quem aceitar o convite da leitura vai entender que é o romance de uma geografia, onde as narrativas e as personagens têm laços com outras histórias: elas começam numa e terminam na outra. Em nossos tempos fragmentados, uma tecelagem de mestre.
Esta inovação no formato foi um pedido de seus leitores. Lilia conta que, quando as pessoas liam suas histórias publicadas no blog, escreviam perguntando quando iriam ler a “continuação”. Foi assim que este estilo que nos arrebata nasceu.
“Apegada aos personagens, experimentei cruzar suas vidas. Virou uma espécie de vício”, diz. O formato é de quase-romance, onde fulano num conto é o pai do cicrano do conto anterior, mas permite que cada história possa ser lida por si só.
Heranças
Nada em Perifobia deveria nos surpreender, mas é preciso estar de olhos muito abertos para ver como as desigualdades nos atingem no cotidiano, todos os dias, de formas diferentes. Lilia está preocupada em mostrar a realidade, mesmo que pelas janelas da ficção — ela conta que brinca com as pessoas como Carolina Maria de Jesus fazia, dizendo: “Cuidado, senão te ponho no meu livro”.
A coletânea fala de muitas mulheres, quase todas chefes de família. O trabalho doméstico e a visão do cotidiano a partir dele é muito presente. “Não convivi com muitos homens durante a infância e a adolescência. Não conheci avô nem pai, só tenho uma irmã. O que eu sempre assisti foram mulheres chefiando as famílias, mesmo. E importei essas memórias pras histórias”, conta Lilia. “Estive sempre cercada de mulheres, foram sempre a minha rede de apoio. Na vizinhança, na escola, no posto de saúde, na biblioteca. Eram sempre mulheres tocando o barco, na providência. Torná-las protagonistas nos livros foi algo espontâneo.”
Neta e filha de empregadas domésticas, Lilia escapou à herança. Formou-se na área de saúde e trabalha como servidora pública no Sistema Único de Saúde, o SUS, que ela defende com veemência. Autora de nove livros (um ainda não publicado, Cavaco do ofício, ganhador do prêmio Carolina Maria de Jesus em 2019), ela conta que o acesso à literatura não era coisa fácil na infância e adolescência. E o samba, cujos versos e estrofes abrem cada uma das histórias de Perifobia, foi “quem a educou”.
São histórias de amor, acima de tudo; não necessariamente romântico, mas pelo outro, pela vida
“Eu ouço samba desde que cheguei da maternidade. Os discos eram os meus brinquedos, os meus livros. E eram quase todos de samba. O samba me distraia, consolava, divertia. Me ensinava. Me distrai, me diverte, me ensina. Me consola. Me faz companhia. Ameniza a saudade”, conta a autora. “Quando eu era adolescente, pelas ruas da Cohab, recorria ao samba como conselheiro. Buscava respostas nas letras e, às vezes, nem buscava. Recebia uma orientação sem perceber. Isso ainda acontece. O samba conversa comigo de igual pra igual.”
E a escritora traz muita poesia para sua prosa. Tem o “barulho do silêncio”. “Doce e vazio como um balão colorido.” “Castelos de saudade.” São acima de tudo histórias de amor, não necessariamente romântico. Mas amor pelo outro, pela vida.
Ela diz ter como missão dar mais visibilidade e registrar as histórias para que elas não sejam esquecidas, para transmitir experiências (Lilia adora ser chamada para falar em escolas, para ler e falar sobre sua literatura com os jovens). Mesmo assim, poderia se dizer que ela ainda não vive de suas obras. Mas, na nossa troca de emails, Lilia me aponta um erro meu — e eu aprendo com ela.
“Na verdade, eu vivo sim de literatura. Não economicamente, mas vivo. Penso que, para que os autores pudessem se sustentar através da literatura, todo um movimento teria que acontecer”, diz ela. “Para que eu consiga me sustentar através da literatura, é importante que meus vizinhos, meus amigos, as pessoas da minha comunidade também estejam confortáveis e íntimos da literatura. Que os equipamentos que promovem a leitura sejam desmistificados. Que a literatura seja apresentada desde a infância como hábito. Que seja comum planejar ir à biblioteca, como se planeja ir à feira, à farmácia, ao supermercado, a um baile. Que as bibliotecas estejam abertas aos sábados, aos domingos, nos feriados. Obviamente, numa escala de trabalho justa para os profissionais. Mas que sejam espaços abertos e possíveis de serem frequentados, não apenas em horário comercial ou em dias úteis. Que sejam noturnos. Que alguém possa optar por ler à noite, numa biblioteca, qual é o problema? Ah, mas não é a nossa realidade, vão invadir, vandalizar, roubar os equipamentos. Olha, não sei. Estratégias. Planos de desenvolvimento e de ação. Geraria empregos, movimento.”
Pergunto se pessoas que se tornam suas personagens têm acesso a seus livros. “Menos do que eu gostaria”, responde. Não tenho mais nada a dizer. Leia Perifobia.
Matéria publicada na edição impressa #91 mar em março de 2025. Com o título “Ficções da vida real”
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