

Literatura brasileira,
Lavoura arcaica e circular
No romance que completa 50 anos, Raduan Nassar narra a luta entre paixão e paciência gerada pelo temor mais primitivo, o incesto
01abr2025 • Atualizado em: 31mar2025 | Edição #92“Se tivesse que citar um único livro brasileiro, qual citaria?”, me perguntou Almeida Faria, escritor português. Respondi à queima-roupa: Lavoura arcaica. Era o café da manhã num festival literário em Póvoa de Varzim, cidade de Eça de Queirós. Faria pediu alguns minutos para buscar algo. Voltou com um exemplar de A paixão. Contou que um dia batera à porta de sua casa, em Lisboa, o jovem Raduan. O autor brasileiro foi agradecê-lo por ter escrito A paixão, inspiração para escrever Lavoura arcaica.
O lirismo de ambos os romances atesta o parentesco, a irmandade lírica que perfurou a tradição e a religião para se debater com e contra ela, a febre da língua.

Lavoura arcaica, publicado em 1975, perfaz cinquenta anos de sua publicação, considerada uma das mais importantes da literatura brasileira. Das três obras publicadas por Raduan, foi a que mais recebeu holofote, com os prêmios Jabuti e Camões, além da aclamada adaptação cinematográfica sob direção de Luiz Fernando Carvalho, em 2001.
Raduan trafega entre a tradição e o pós-modernismo, cria diálogo entre o aspecto rural e o modernismo brasileiro — considerando aqui sua outra grande influência, a de Jorge de Lima, de quem Raduan empresta, para epígrafe, versos da obra Invenção de Orfeu. O mesmo verso da epígrafe ressurge no corpo do texto, na fala do personagem André em seu momento mais lírico e hipnótico: “Que culpa temos nós dessa planta da infância, de sua sedução, de seu viço e constância?”.
Como escreveu Manuel Bandeira em Poética referindo-se ao rompimento com a formalidade do parnasianismo, Raduan traça um caminho entre o lirismo bem comportado e o lirismo dos loucos. O romance recebe diversas influências. Há contágio da filosofia (Nietzsche, Novalis) e da religião (Alcorão, Evangelho de Lucas). O autor não esconde as influências; pelo contrário, é possível tateá-las.
Raduan afirma que “em literatura, quando você lê um texto que não toca o coração, é que alguma coisa está indo pras cucuias”. Ele parece buscar um centro irradiador de sentido, o coração do texto pelo qual a obra alcança o patamar da experiência. Diz ainda o escritor, em rara entrevista: “Nos anos 60, eu andava entusiasmado com o behaviorismo, por conta de um dos cursos de psicologia que eu fazia. Daí que tentava um romance numa linha bem objetiva. Só que em certo capítulo um dos personagens começou a falar em primeira pessoa, numa linguagem atropelada, meio delirante, e onde a família se insinuava como tema. Tudo isso implodia com o meu esqueminha de romance objetivo”.
Jogo temporal
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A história se passa na fazenda da família, numa região não esclarecida. Tanto o tema quanto a localização da trama remetem ao a-histórico, algum tipo de eternidade. O romance é dividido em duas partes: “A partida” e “O retorno”. Dois movimentos. A partida é volta ao ponto anterior, traz a existência prévia do personagem, não é a saída para um novo mundo, mas volta ao já conhecido. O retorno espia o arcaico e a herança. Sua consequência, como violência antiga, é tanto cronológica como histórica.
O título Lavoura arcaica também instiga: há um jogo temporal. O tempo possui condição ambígua, dirá o filósofo Paul Ricoeur, pois está preso ao movimento e à alma que o descrimina, mas será justamente a poética que unirá as duas posições, superior à especulação que acaba por separá-las.
A obra mostra, nos primeiros capítulos, a lembrança de uma festa vigorosa e se fecha com outra, numa retomada do ciclo familiar. O protagonista André lembra o caminho do filho pródigo, passagem bíblica sobre o filho desgarrado que volta para casa arrependido de sua extravagância. Mas no caso de André, ele tumultua a parábola, como lembra o escritor Estevão Azevedo, pois o personagem não volta espontaneamente para casa. Ele é levado por seu irmão mais velho e não há o desejo de submeter-se às leis do pai em seu retorno.
‘Quando você lê um texto que não toca o coração, é que alguma coisa está indo pras cucuias’
Se levarmos as epígrafes como sismógrafo da obra, é possível insinuar a primeira parte do romance como um épico do homem que enfrenta e ultrapassa as fronteiras do reino, neste caso, moral.
O caráter épico é lembrado pela epígrafe de Jorge de Lima com sua inspiração lusitana. Invenção de Orfeu emana, de um lado, Os lusíadas de Camões, do outro, o mito grego encarnado no poeta Orfeu, sujeito que singra outro mar, subterrâneo. O mito e o épico sinalizam o destino de André para quem, como Orfeu, o objeto de desejo lhe escapa, condenado então a singrar ondas psíquicas nebulosas. Orfeu atravessa a região sombria da morte recebendo autorização para levar a esposa consigo com a condição de não olhar para ela até terminar o caminho de volta à luz. A primeira parte de Lavoura arcaica também poderia se aproximar de um fado português.
Na segunda parte do romance, a epígrafe é retirada do Alcorão: “Vos são interditadas: vossas mães, vossas filhas, vossas irmãs”. Institui-se a interdição dos homens às mulheres da família nuclear. O versículo integra a Sura das Mulheres, parte mais extensa do Alcorão destinada a esclarecer aquilo que circunda as mulheres, sua infância, o casamento e a maternidade. O texto religioso parece também remeter ao caráter épico, pois, como dirá o próprio Raduan Nassar, o maktub (está escrito) árabe teria relação com a implacabilidade do destino grego. Interessante notar que há uma dinâmica simbiótica entre o título, epígrafes e influências.
Respiração ofegante
A composição do romance é construída numa respiração ofegante que só arrefece, vez ou outra, quando é dado ao leitor conhecer a voz do pai, este que perderá sua vigilância das leis ao final do romance, ocasião em que retorna a fala febril de André. A palavra “lavoura” surge cinco vezes no volume. Para Maria Silvia Cintra Martins, pesquisadora da área de tradução, é como se Raduan semeasse a palavra pelo livro. Martins também atenta para o fato de a palavra “arcaico” aparecer uma única vez no romance, localizada no vigésimo capítulo, no meio da trama — exatamente depois do incesto, razão pela qual o personagem se move e se deixa mover. Mesmo capítulo onde retorna o trecho de Invenção do Orfeu, uma reafirmação que estrutura o sentido da obra.
O romance assume uma linguagem tão mundana quanto litúrgica. Este movimento será legível no decorrer da história, narrada em fúria enfermiça, mas “purificadora”, numa chave religiosa de sacrifício. No sermão do pai, há uma exigência do equilíbrio para não ser ferido pelo tempo. A corrupção do tempo pode causar tremores que se iniciam nas extremidades e chegam à mente de forma pestilenta e trevosa. A corrupção do tempo, para o pai, é a paixão, que deve estar longe da família.
É preciso erguer uma divisa entre o interior da casa e as paixões. O conselho é claro: “não se profana impunemente ao tempo a substância que só ele pode empregar nas transformações”. O pai dirá que é preciso guardar o corpo, pois o recolhimento o protege da intensidade. Porém, não se preserva o corpo sem fazer nada, as ervas daninhas nascem em terras ociosas.
Mais importante, é preciso ser dócil diante do desejo do tempo, respondê-lo com a resposta que ele pede. Repete, em sua prédica, a paciência como purificador do avanço humano contra o tempo, a paciência é exercício, não está dada. É preciso cultivo e lavoura de brandas fantasias onde o homem se banha em águas mansas.
O pai também fala sobre velhice, lugar do tempo onde se colhe a doçura e a sabedoria, claro, se tiver sido semeada. A paciência como suporte da espera, a tal espera da colheita. Não se deve blasfemar, amaldiçoar, rogar praga, insultar o sagrado que é o tempo e suas esperas; também não se pode esquecer que “o amor na família é a suprema forma de paciência”.
O romance talvez afirme que a paciência seja o próprio tempo, sempre de fundo, o mesmo e perene; a paixão, a sua interrupção ou desvio. Ou se pode dizer que a paixão é o campo de saída do homem, seu tempo e sua linguagem iniciais, sendo a paciência algo a ser cultivado em trabalho árduo e contínuo até tornar-se segunda natureza. Nas duas hipóteses, Raduan coloca ambas em fricção. O sermão da paciência, assim como da paixão, se faz no tempo, elemento inalienável da linguagem na qual os personagens se exprimem. A lavoura da palavra se dá no tempo, e também o revela.
É no capítulo quinze, sobre o avô, que surge a palavra maktub, podendo ser entendida como algo predestinado a acontecer, sendo sua origem da palavra kitab, cujo significado é livro, o que já estava escrito. A relação entre o avô e o que já estava escrito ou predestinado a acontecer traz a ideia de que os desvios delirantes de André também fazem parte da gramática familiar. É tão esperado quanto antigo.
Raduan diz que lê o Livro — com maiúscula — da vida, fonte principal, confiável, contínua e inesgotável
Uma gramática circular como o discurso de André, que pode descrever o sermão do pai sem se contaminar por ele, mas sendo um o engendro do outro. O pai só pode conter algo cujas consequências ele supõe de antemão, enquanto André só pode transgredir a linguagem paterna por estar enraizado nela, compartilhar do mesmo caule. De certa forma, André faz o inventário daquilo que ele herda, a linguagem e seu desvio no interior dela mesma.
A esgrima de linguagens, a luta entre paixão e paciência, se dá pelo temor mais arcaico, o incesto. Não apenas a trama se desenvolve em torno do incesto e a partir dele, mas a transgressão também se dá no trabalho de descrição do ato, fazendo o próprio ato falar. Ana, sua irmã, dirá André, tem o verbo nas mãos. O corpo de Ana atravessa a trama como puro estado de corpo: dança, rodopia, enleva, enlaça, das mãos geladas até assumir ponto vital máximo numa dança rural, como animal de engorda antes do sacrifício. André recusa sua consanguinidade discursiva ao romper com o sermão da paciência do pai, mas comete a relação consanguínea com a irmã numa espécie de retorno à família mesma.
O sermão do pai
A segunda parte do romance revela outra densidade. O livro caminha de um trajeto sob o eu lírico do poema, sob a epígrafe de Jorge de Lima, uma cápsula subjetiva, para assumir mais abertamente a religião mesma como um programa de conduta que ambiciona o regimento moral, e com ele, o regime das emoções, uma gerência das ações e afetos. A moral, expressa via sermão, ocupa lugar à mesa na figura do pai. O sermão é também o mundo natural de André, no sentido de que o sermão o precede, a configuração discursiva antecede sua existência na família. O sermão é dito à mesa, local que precisamente produz camada sólida à preleção, uma vez que é também o espaço da reunião familiar em torno do que é fundamental: a refeição e a palavra, púlpito do pai que enuncia a prédica. Estão à mesa os pais e os filhos na partilha do alimento que é pão e exegese.
No capitulo vinte e cinco, inicia-se o longo diálogo entre André e o pai. Trata-se do sermão escrito em diálogo e não em discurso direto livre, momento em que André contamina o discurso do pai com o próprio. Aqui, Raduan Nassar dá contorno e autonomia à fala do pai sem passar pela mediação do filho. André defende que há aqueles que não se apaziguam, ainda que façam todo o possível. O pai estranha sua fala e evoca outra vez a paciência contra o desespero, pede que não dissimule, o pedido é para que não faça desvios e torções na língua. André responde que a desordem pode ter a semente da ordem, recusa a conciliação da linguagem paterna com a própria:
Não acredito na discussão dos meus problemas, não acredito mais em troca de pontos de vista, estou convencido, pai, de que uma planta não enxerga a outra.
Se há sacrifício na linguagem e no tempo, há também sacrifício de si. O ferimento e o tabu no coração da família não interrompem a lavoura arcaica; ao contrário, semeiam outra para ressoar as que a precederam e as que virão, contornando ou soterrando de vez o que há de indomesticável nos corpos e na linguagem.
Aos cinquenta anos, Lavoura arcaica segue como leitura fundamental que faz o leitor entrar em contato com outras leituras, clássicas e contemporâneas. Sobre o próprio ato da leitura, Raduan diz valorizar livros que transmitam a vibração da vida; suas leituras foram escolhidas pelo relato da experiência do outro. Leituras estas sem apego, no sentido de não sacralizar o ato, mas inseri-lo na vida.
Raduan ilustra seu pensamento ao comentar “A busca de Averróis”, de Jorge Luis Borges. No conto, Averróis, que é médico, filósofo e divulgador de Aristóteles, está diante do desafio de traduzir a Poética, do filósofo grego, e não encontra palavras para comédia e teatro por não haver, naquele momento, a ideia de teatro na cultura islâmica. Raduan lembra que Averróis, no conto borgeano, não encontrando as traduções destas palavras nos livros, vai esbarrar nos termos que busca na realidade próxima, como crianças num pátio brincando de fingir. Raduan Nassar diz que lê o Livro — livro com maiúscula — da vida. O Livro do mundo é fonte não só principal, como confiável, contínua e inesgotável.
Matéria publicada na edição impressa #92 em abril de 2025. Com o título “Lavoura arcaica e circular”
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