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Artistas e intelectuais lamentam morte de Zé Celso, ‘imprescindível para a cultura e a liberdade de expressão’

Diretor de teatro, morto aos 86 vítima de um incêndio, ‘desafiou a ditadura, a censura, sua moral e seus bons costumes’, mas ‘continuará a nos impulsionar à luta e ao delírio’

06jul2023 | Edição #71

Artistas, ativistas e intelectuais lamentam a morte e homenageiam José Celso Martinez Corrêa, um dos maiores nomes do teatro brasileiro. Zé Celso, como era chamado, morreu nesta quinta, 6, aos 86 anos. O artista foi internado na UTI do Hospital das Clínicas de São Paulo depois de ter 53% de seu corpo queimado por um incêndio em seu apartamento, causado por um aquecedor elétrico.

"O tempo parou. A ethernidade de Zé. O amor todo desse mundo. O palco continua. Em todo palco. Zé continua. Dói demais, mais do que se pode, mas do tamanho do que se deve. A forma. Seu roteiro não seria mesmo simples, nunca foi. O fogo. Tragycomédiaorgya. Amor. Zé", disse a compositora, atriz e escritora Karina Buhr, autora de Mainá (Todavia).

O diretor teatral e professor da Escola de Comunicação e Artes da USP Antônio Araújo disse que Zé Celso continuará a impulsionar “a luta e o delírio”. “Zé abalava o tempo presente, demolia aquilo que do passado já não devia existir mais e, sobretudo, era um invocador de futuros. Hoje, uma tristeza sem fim, sem tamanho, sem lugar. Mas qual o fantasma de Hamlet, ele continuará a nos impulsionar à luta e ao delírio. Zé continua e continuará vivo", disse o autor de A gênese da vertigem: o processo de criação de o paraíso perdido (Perspectiva).

Qual o fantasma de Hamlet, ele continuará a nos impulsionar à luta e ao delírio. Zé continua e continuará vivo

Cris Olivieri, advogada e organizadora de Direito, arte e liberdade (Edições Sesc), lembrou da cerimônia de casamento do diretor, realizada há um mês no Teatro Oficina que dirigia. “Há exato um mês, o Oficina era só celebração, cultura e diversidade. Hoje, perdemos o grande Zé Celso , imprescindível para cultura brasileira, para valores arejados, para a democracia e para a liberdade de expressão. Felizes os brasileiros de terem tido esse artista, pensador e fazedor de mundos. Sorte de quem pôde estar perto em algum momento. Privilégio de ter essa chance. Siga em luz, sua energia e obra seguem com o Brasil.”

O professor de direito e colunista da Quatro Cinco Um Renan Quinalha lembrou do papel do dramaturgo contra a censura durante a ditadura. “Zé Celso foi esse sujeito que desafiou a ditadura, a censura, sua moral e seus bons costumes. Que denunciou que ‘nós não estamos passando no buraco da abertura’. Que nos antecipou, à época, que a democracia ainda estava longe de ser alcançada no país, e que isso era motivo para seguirmos nos palcos e nas lutas”, disse ele, autor de Contra a moral e os bons costumes (Companhia das Letras).

O diretor mais discutido do país

Nascido em 30 de março de 1937, em Araraquara (SP), “o menino quieto mas desbocado” transformou-se, com sua “arte e estilo malcriado”, no diretor de teatro mais discutido do país, como conta o jornalista Geraldo Mayrink em artigo de 1969.

Era a época em que Zé Celso, como é chamado, estreou Galileu Galilei. O diretor, então, já era conhecido por suas montagens revolucionárias, seu embate com a censura e a ditadura militar e a fundação, junto a Renato Borghi, Fauzi Arap, Etty Fraser, Amir Haddad e Ronaldo Daniel (Ron Daniels), do Teatro Oficina – símbolo da vanguarda e resistência no mundo das artes cênicas no Brasil e no mundo.

Antes de Galileu, com o grupo do Oficina, Zé Celso montou O rei da vela, baseado no livro de 1933 de Oswald de Andrade, e Roda viva, com música e texto de Chico Buarque. Essa última foi alvo de um atentado do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) e censurada pela ditadura militar. O diretor já havia cutucado os militares e a extrema direita em 1963, ao encenar Pequenos burgueses, de Maksim Górki, em uma montagem que aproximava a Rússia pré-revolucionária do Brasil onde o golpe de 64 estava sendo gestado.

Alvo da repressão, Zé Celso foi preso em 1974 e se exilou na Europa. Só foi anistiado pelo Estado brasileiro em 2010.

Oficina

A companhia formada por Zé Celso e os atores e atrizes de seu grupo (muitos deles, seus colegas na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco) adquiriu a sede do Teatro Oficina, no bairro do Bixiga, em São Paulo, em 1961. Com projeto de Joaquim Guedes, tinha seu espaço cênico em formato de arena. A sede original foi destruída por um incêndio, em 1966, e logo reformada. Em 1991, ganhou nova arquitetura, com um projeto da arquiteta Lina Bo Bardi.

“O menino quieto mas desbocado” transformou-se, com sua “arte e estilo malcriado”, no diretor de teatro mais discutido do país

Desde os anos 90, o espaço é disputado na Justiça. O apresentador Silvio Santos, dono do SBT e do terreno, reivindica o local, onde pretende erguer três torres residenciais, enquanto Zé Celso lutava para a construção de um parque público na área.

Nessa mesma sede do teatro, há um mês, o diretor se casou com o ator Marcelo Drummond, com quem viveu por 37 anos, em uma cerimônia dionisíaca como a vida e obra de Zé Celso.

Matéria publicada na edição impressa #71 em maio de 2023.