Cultura,

Onde cabem todos

Em texto de 2004, jornalista destaca a atuação de Danilo Santos de Miranda (1943-2023) à frente do Sesc-SP e na construção da cultura brasileira

30out2023 | Edição #75

Dizem que é um duelo de titãs, entre dois pistoleiros. De um lado, Danilo Santos de Miranda, ex-seminarista jesuíta, sociólogo e filósofo com diploma. Do outro lado, ou talvez pelo mesmo, Gilberto Gil, músico por vocação e economista também diplomado. Ele é autor de Aquele abraço e tantos sucessos que o fez muito mais famoso que o seu suposto rival. Uma vez compôs estes versos: 

A cultura 
E a civilização 
Quero que se danem 
Ou não

Isto foi antes se tornar ministro da Cultura e agora deve ter mudado de opinião. Cultura é um assunto do qual Danilo trata há vinte anos como diretor regional do Sesc (Serviço Social do Comércio) em São Paulo. Daí o confronto que criaram entre os dois homens ilustrados, o compositor de “Cálice” e “Chororô” e o administrador de um incomparável latifúndio que emprega três mil funcionários. Ele se espalha por trinta unidades e 360 mil metros quadrados de área construída só no estado de São Paulo. O império daniliano compõe-se de salas de teatro, bibliotecas, locais para Internet, quadras para esportes e restaurantes. Tudo lá é superlativo. Se o ministro trata das coisas do espírito, o administrador cuida também da carne. Seis milhões de refeições são servidas anualmente nas unidades paulistas. Em Bertioga, cidade praiana, a instalação destinada a férias e turismo dos trabalhadores e suas famílias pode receber mil pessoas ao mesmo tempo. “Formamos a maior rede de fato”, acredita Danilo. “Temos a maior rede de estruturas montadas neste país para a ação cultural”. 

Com a barba branca que lhe dá uma aparência mais envelhecida do que seus 61 anos (um a menos que o ministro da Cultura, que, no entanto, parece mais jovem), Danilo também canta, mas não sobe em palcos. Ele se esconde numa sala de um prédio da avenida Paulista, sede do grandioso Sesc, e de lá controla um orçamento anual que este ano será de 230 milhões de reais (contra 220 milhões do seu primo pobre, o Ministério da Cultura, onde Gil manda e faz o que pode). Danilo igualmente faz o que pode e manda em três mil funcionários. Gil tem só um ano de ministério, Danilo duas décadas. Entranhou-se na burocracia de dirigir uma instituição privada com vínculos no governo. Mais: entra também, por assim dizer, nas áreas de outros ministros, como Tarso Genro e Humberto Costa, a dupla da educação e saúde. Seguindo um mandamento antigo e pouco respeitado, mens sana in corpore sano, a entidade dirigida por Danilo trata de dores musculares, dos dentes e corpos dos brasileiros. Tem programas de esportes e ginástica, e ensina aos iletrados em computadores, por exemplo. Ele acredita no seguinte: “Somos uma entidade educacional, de educação permanente”.

Salas do Sesc

Criado em 1946, logo depois do fim da ditadura getulista, o Sesc continua sendo um sucesso nos tempos neoliberais de Fernando Henrique e Lula da Silva. Presidentes e ditadores militares jamais se meteram na vida do Sesc. Não era da sua conta, paga pela iniciativa privada. A entidade nasceu junta com o Sesi (Serviço Social da Indústria) celebrando um pacto para a prestação de serviços aos trabalhadores, já que o governo não tinha – como ainda não tem até hoje – condições de atender a estas necessidades. Quando Roraima era ainda território, já havia lá uma sala de teatro do Sesc. Hoje são 27 diretorias regionais, uma por Estado. Atende a áreas muito diversas, mas sua a face mais exibida é a da cultura. Não é por acaso que a estrela Regina Duarte se mandou para a periferia da grande São Paulo a fim de apresentar no Sesc Santo André seu espetáculo Coração bazar, com textos de Carlos Drummond de Andrade, Adélia Prado e da portuguesa Florbela Espanca. 

Se o ministro Gil brilha nos palcos do mundo, o administrador Danilo exibe também luminoso currículo. Entre nomes que já passaram pelos seus domínios no Brasil estão pensadores como Edgard Morin, Domenico de Masi e Jean Baudrillard, vanguardeiros teatrais como Jerzy Grotowski, Kazuo Ohno e Peter Brook, além de atores como Vanessa Redgrave, Willem Dafoe e Isabelle Huppert. Todos estiveram nas salas do Sesc. Este elenco dá tanta água na boca que surgiu a suspeita de que Danilo, com sua voz de contralto que já se fez ouvir em coros, está mais sintonizado com a cultura do que o compositor de voz aveludada que de certa forma premonitória compôs “Coragem pra suportar”, “Clichê do clichê” e “Por que alguém tem inveja de você” (inédita).

Portanto, não há nada mais falso sobre esta desafinação entre os dois. A dança das cadeiras entre a sala paulista e o gabinete de Brasília não enlaça seus dois ocupantes. “O ministro é uma pessoa sensível. Está querendo melhorar sua infraestrutura e conseguir recursos que não tem”, avalia Danilo. “Aí Gil poderá interferir de uma maneira mais expressiva, mas eu não acredito que um organismo público possa administrar o processo cultural. Isso não existe”. E por que não poderia existir? Ele mesmo responde: “Não substituímos o ministério da Cultura. Não apresentamos nenhuma proposta, mas realizamos realmente um trabalho em espaços físicos, com eventos e contratações diretas com os criadores. Não acho que o poder público deva fazer o que fazemos. Quero dizer que o Estado precisa criar condições para que seja feito. Financiar o que está coberto pelo mercado não tem sentido”.

Passando o pires

Os criadores que vivem passando o pires nos guichês das estatais não acreditam nisto. O Sesc seria rico, rico até demais, pois a lei manda que 1,5% da folha de pagamento das empresas do comércio são destinadas aos seus cofres. Deve ser uma dinheirama. Os artistas estão esperando por mecenato, mas Danilo não lhes dá dinheiro. Sovina, dá instalações, mas precisa demais dos artistas. “Não adianta fazer obras, levantar paredes, mas ocupar os espaços com uma programação”, afirma. Ele acredita que o mecenato acontece quando uma empresa, de maneira voluntária, dá uma ajuda por interesse. Trocando em miúdos: “É uma forma de marketing, no qual a empresa tem que aparecer. Não é o nosso caso. Nosso negócio é proporcionar acesso às pessoas para melhoria de suas vidas”. As reclamações são muitas, pois o caixa no prédio da avenida Paulista está fechado a quem passe por lá pedindo dinheiro para produções. Raul Cortez, que está encenando duas peças curtas em São Paulo, A meia-noite e Fica frio, deve achar que esta fortuna talvez esteja se perdendo pelo ralo —e não está sozinho nesta sua crença. Ele fala em causa própria, dizendo que o atual governo só pensa em cinema, como se governos tivessem gosto por alguma coisa. “Filmes têm mais glamour, mais brilho. O teatro está sendo menosprezado e humilhado e não acredito que o ministro Gil esteja interessado em mudar esta situação”, sustenta o consagrado ator de novelas com sotaque italiano como Esperança

O ministro do Sesc não foi ouvido a respeito mas, se fosse, discordaria. Primeiro, porque não acredita que a entidade que dirige esteja atrás de brilho. Lida com artistas que não têm como apresentar seu trabalho e sua intenção não é transformá-los em grandes astros, embora isto eventualmente aconteça, como foram os casos de Daniela Mercury, Maria Rita, Ultraje a Rigor, os Titãs e o falecido Chico Science. Dá outro exemplo: “Na década de cinquenta apareceu um menino negro em Bauru, chamado Edson. O Sesc lhe deu a oportunidade de jogar bola num time organizado, usando camiseta num campeonato infantil, com tudo. É claro que não fizemos o Pelé, mas criamos as condições”.

Sobre a programação popular e erudita, Danilo insiste: “Cabem todos”. Talvez por isto as salas do Sesc vivam superlotadas

Segundo, o Sesc não está nadando em dinheiro, como se acredita. Não busca financiamentos, não tem nenhum vínculo com a rede bancária e vive exclusivamente de sua arrecadação. “Num país onde tudo é difícil, uma empresa que planeja ou cumpre seu objetivo parece perdulária”, diz. Ao contrário de todos os ministros que fazem um chororô, Danilo acha que ganha bem e que 230 milhões por ano estão de bom tamanho. Gilberto Gil, que tem menos, que o diga. “Nós administramos como se tivéssemos muita falta de tudo. A gerência da escassez é um dos segredos do sucesso”, diz Danilo. É só uma frase, mas ela tem tido consequências. 

No mundo do Sesc, segundo esta frase, cabem todos, do jeito que dá. Cabe o consagrado e irascível encenador Antunes Filho, que há anos é pago para dirigir o CPT (Centro de Pesquisas Teatrais), de onde saíram espetáculos memoráveis como Macunaíma e Nelson Rodrigues — o eterno retorno. Cabe a rede fechada Sesc-Senac (canal 3 na televisão fechada), cheia de entrevistas e documentários. Cabe uma revista mensal, chamada E, na qual se pode ler um comentário sobre a peça O diabo e o Bom Deus, de Jean-Paul Sartre, que está sendo encenada pela primeira vez no Brasil. Diz o autor à plateia que foi assisti-la no Sesc-Anchieta, no centrão paulistano: “A nosso ver, a filosofia não existe sob qualquer forma que a consideremos. Esta sombra da ciência, esta eminência parda da humanidade, não passa de uma abstração hipostasiada”. 

Naquela mesma noite paulistana, redigida pelo intricado autor de O ser e o nada, a cantora Maria Alcina — lembram dela, de sua voz grave? — estava em São Caetano do Sul (SP), apresentando um repertório de Adoniran Barbosa. Sobre esta programação popular e erudita, Danilo insiste: “Cabem todos”. Talvez por isto as salas do Sesc vivam superlotadas. “Há demanda demais”, calcula. 

Este cabimento se deve, em parte, à personalidade do comandante do Sesc, católico de carteirinha, casado e pai de duas filhas. Seu temperamento inclui um gosto musical “muito eclético”, da “verdadeira música brasileira”. Isso o torna menos chegado a “este mercado meio vulgar, trivial”. Não dá os nomes dos artistas vulgares e nem se interessa quando lhe dizem que “fulano está vendendo tantos discos”. O ministro Gil poetou: 

Eu gosto mesmo 
É de comer com coentro 
É de comer com coentro
Eu gosto mesmo 
É de ficar por dentro 

Regente

Danilo se acha por dentro, mas se vê mais como regente, de fora. “Conduzindo uma orquestra”, diz. Antes teve um trabalho bem mais subalterno, que de certa forma o explica. Nasceu em Campos, cidade mais ou menos próspera do interior do estado do Rio. Foi o segundo entre quatro irmãos de uma família religiosa, de avô farmacêutico e pai que se dividia entre o jornalismo e a odontologia. Quis ser padre, estudando num colégio jesuíta em Friburgo (RJ), onde o incentivaram a escrever até poesia e o treinaram em atividades intelectuais e físicas, “para cansar o corpo e baixar a bola”, como diz Danilo. Depois fez o noviciado em Itaici, onde um de seus mestres era o então padre Luciano Mendes de Almeida. Itaici, de certa forma, foi obra sua. O célebre convento onde se reúnem hoje os potentados da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) foi construído, tijolo por tijolo, com sua ajuda. Ele os carregava. Além disto, operário de obras, trabalhou em outras atividades. Colheu algodão. Foi boia-fria, acordando de madrugada e comendo marmita no campo. Passou por provações espirituais e físicas. No primeiro caso, ensinavam-lhe nas aulas latim e grego. No segundo, era obrigado a ir para as ruas pedir esmola, durante um mês, talvez como parte do treinamento para merecer a vida eterna. 

Um dia achou que isto não era com ele. Aos 24 anos saltou fora do seminário da Faculdade dos Jesuítas, na via Anhanguera, perto da grande São Paulo, e foi procurar emprego na capital. Achou. Mas continuou sendo um cruzado eucarístico e a convivência religiosa fundamentou seu interesse pela política. O quase padre se arrumou numa empresa de recursos humanos e sua turma era da pesada, incluindo os freis Tito e Betto, José Serra, José Dirceu e Luís Travassos. Estudou filosofia (que “não existe”), ciências sociais e recursos humanos. Progrediu tanto que agora tem quinze cargos internacionais em entidades que vão da All of the World, da Suíça, ao International Institute for Cultural Enterpirise, Estados Unidos. Foi também jurado do famoso Festival de Humor de Piracicaba (SP). Era pouco. Andou por conferências internacionais nos lugares-comuns dos centros culturais e em outros, incomuns. Seu passaporte está carimbado nos aeroportos de Montreal, Tóquio, Marrakesh, Berlim, Cardiff, Estocolmo, Hong Kong, Atenas, Minneapolis, Genebra, México, Marselha, Veneza e Tel Aviv, entre outros. Dentro de casa, além de Piracicaba, ainda faz parte do Fórum Cultural Mundial, semelhante a outros fóruns como os de economia e meio ambiente. 

Segundo Danilo, estes encontros destinam-se a dar vazão a entidades e pessoas à margem do mundo globalizado. Quer dizer, a artistas e produtores que fazem um trabalho autônomo, localizado, e com poucas possibilidades de mostrar sua produção. Trocando em miúdos: “Nasceu de uma necessidade de muitos financiadores internacionais, tipo fundações, que perceberam que a quantidade de recursos da filantropia de alguma forma se perde num ralo, por não dar resultados práticos”, diz. O cruzado quer agora chamar para este Fórum alguns “donos do mundo” da política e da cultura, como Kofi Anann, secretário-geral da ONU, o ex-ministro francês Jack Lang e o ex-presidente sul-africano Nelson Mandela. 

“É uma coisa que tem uma perspectiva um pouco utópica”, conforma-se Danilo. Mas quem diria que Roraima, que em outros tempos mal tinha luz elétrica, acabou ganhando uma sala de teatro?

Quem escreveu esse texto

Geraldo Mayrink (1942-2009)

Matéria publicada na edição impressa #75 em outubro de 2023.