Bibliofilia,

Botando banca

Inaugurada durante a pandemia, a Banca Higienópolis traz pensamento crítico, literatura negra, indígena e LGBTQI+ para um dos metros quadrados mais caros de São Paulo

05nov2020

Audre Lorde, Silvio de Almeida, Ailton Krenak, Emicida, Itamar Vieira Junior e Maya Angelou mudaram-se de mala e cuia para o espigão da Paulista. Há pouco mais de um mês, papeiam nas prateleiras de uma banca de jornais localizada na esquina da avenida Higienópolis com a rua Martim Francisco, na altura do edifício de número 308.

A Banca Higienópolis ou HG – sigla para “Histórias de Gentes” – rebentou contrariando todas as estatísticas, tal qual seus moradores mais ilustres. O espaço foi inaugurado no mês de agosto, durante a pandemia da Covid-19, levando literatura negra, indígena, LGBTQI+ e de pensamento crítico para um dos metros quadrados mais caros da cidade de São Paulo. A ideia, segundo os fundadores Juliana Borges, Thom Levisky e Dani Siqueira, é de que aquele seja um lugar de compartilhamento de histórias, ficcionais ou não.

Entre espadas de São Jorge e um frigobar repleto de kombuchas, os livros “cabeças” também dividem espaço com revistas escolhidas a dedo. Desde as nacionais, como Serrote, Claudia e esta que vos escreve, até as gringas difíceis de encontrar dando mole por aí, tal qual a Trasher, publicação underground voltada ao skate, e a Vogue britânica, que desde 2017 é editada por Edward Enninful, um homem negro imigrante de Gana. Na seção de Histórias em Quadrinhos, os tradicionais “formatinhos” da Marvel e DC dão espaço para Angola Janga e Cumbe, de Marcelo D’Salete, a biografia ilustrada de Carolina de Jesus 

Cutucando

“A gente tá em Higienópolis, que é um bairro historicamente com outro tipo de pensamento, o próprio nome já carrega um significado muito forte. Queríamos dar uma cutucada e gerar um outro tipo de pensamento nessa galera”, explica Thom. Um dos objetivos do espaço é tornar-se um ponto de encontro e de venda central para poetas e autores independentes da periferia, que dependem de saraus e slams para escoar suas produções.     

“A banca tem essa coisa de estabelecer uma relação com o bairro e com as pessoas que por ali passam. Juntamos essa afetividade com a preocupação em repensar esse espaços”, explica Juliana. A reflexão a respeito do formato das bancas não é por acaso. Em dez anos, o número de estabelecimentos cadastrados como “banca de jornal” na Prefeitura de São Paulo era de 3.178. Hoje são 2.638, uma redução de quase 17%. Por conta dessa crise setorial, há até mesmo iniciativas mais radicais, como a “A Gente Banca”, do Santander, que propõe transformar as bancas de jornais e revistas em outros estabelecimentos, como bancas-manicure, chaveiro ou assistência de celular.

A HG, por sua vez, permanece fiel à identidade clássica das bancas de revistas que acompanharam o crescimento de seus criadores e dos que vieram antes deles. Quando comparada com a Tatuí e a Curva, que completam o circuito das bancas de conteúdo menos perecível dos arredores de Santa Cecília, a Banca Higienópolis pode até ser considerada a mais caxias, apesar de caçula. Ao contrário das irmãs mais moderninhas, o letreiro é o tradicional sem firulas, a estrutura e as portas de enrolar são de chapa de aço, e o balcão do caixa é decorado com guloseimas, acessórios de tabacaria e palavras cruzadas.   

De baixo pra cima

A divulgação do espaço tem sido feita de maneira orgânica, tanto nas redes sociais quanto presencialmente. “Essa é uma das coisas legais. Tem gente que mora no bairro, vem aqui e fala: a gente tava precisando de um espaço como esse aqui”, diz Juliana. Para aqueles que estão com saudades de frequentar bancas e livrarias e contar com o atendimento personalizadas dos vendedores, a banca tem atendido via Instagram e WhatsApp. Caso a publicação que o cliente procura está esgotada, Thom, Dani e Juliana aparecem com sugestões parecidas que podem ter fugido do radar. 

Até agora, o público mais fiel da Banca Higienópolis tem sido o infantil. Os livros dispostos em uma prateleira à altura das crianças trazem temas como transexualidade, transição capilar, classes sociais e cultura indígena. “A gente está falando de uma construção de um futuro melhor e a melhor forma de fazer isso é pelas crianças mesmo. E esses títulos são muito poderosos”, constata Thom.

Antes Boulevard Bouchard, o bairro de Higienópolis foi renomeado assim por ter sido o primeiro da cidade de São Paulo a se preocupar com  o saneamento básico e a higiene doméstica de seus habitantes. Sua mais nova moradora surge como precursora também no que diz respeito ao asseio. Dessa vez, no entanto, arejando as ideias de quem ali vê a vida passar.

Quem escreveu esse texto

Clara Rellstab

É jornalista, roteirista e repórter do Uol.