Bibliofilia,

Bagunça na biblioteca

Ensaios de Roberto Calasso situam o leitor na rica paisagem mental desenhada pela história pessoal e coletiva da leitura

01mar2023

O título Como organizar uma biblioteca sugere um volume de autoajuda, um manual cheio de macetes engenhosos assinado por quem, tendo passado a vida entre livros, deve ter muito a ensinar sobre a arte de impor alguma ordem racional à selvagem população de papel das estantes. Alfabética? Temática? Cronológica? Todas juntas e misturadas? Ocorre que a coleção de ensaios do crítico, editor e erudito italiano Roberto Calasso (1941-2021) está mais para autoatrapalhação — no melhor sentido da palavra. O “tema altamente metafísico” (palavras do autor) pode deixar o leitor tão perplexo quanto sempre esteve na hora de distribuir seus livros nas prateleiras, mas o ajudará a situá-los na rica paisagem mental desenhada pela história pessoal e coletiva da leitura.


Como organizar uma biblioteca, coleção de ensaios do crítico, editor e erudito italiano Roberto Calasso

Lançado na Itália em 2020, este que é um dos últimos livros do prolífico Calasso traz, além do ensaio-título, um estudo crítico-antropológico sobre a época de ouro das revistas literárias europeias, no período entre as duas guerras mundiais, e dois textos de menor fôlego — um sobre um artigo jornalístico de 1665 que seria a primeira resenha literária da história (sugestivamente, um ato de compadrio) e o outro sobre os desafios enfrentados pelas livrarias físicas em tempos de Amazon. Os quatro ensaios têm a marca do autor de As núpcias de Cadmo e Harmonia, aquela mistura de profundidade e legibilidade que leva o leitor a se sentir mais inteligente a cada frase (um exemplo: “O livro, como a colher, pertence àqueles objetos que são inventados de uma vez por todas”). Cabe ao carro-chefe do volume, ensaio homônimo ao livro, ocupar o maior número de páginas e concentrar a maior densidade de boas sacadas.

Os livros precisam ser lidos, consultados, metabolizados, conversando borgianamente uns com os outros, batendo boca à moda italiana

Primeiro é preciso lidar com a sensação de que Calasso está mais interessado em bagunçar nossa biblioteca do que em organizá-la. “A melhor ordem, para os livros, só pode ser plural”, sentencia de saída. “Não só isso, mas deve ser ao mesmo tempo sincrônica e diacrônica: geológica (por camadas sucessivas), histórica (por fases, caprichos), funcional (ligada ao uso cotidiano num determinado momento), maquinal (alfabética, linguística, temática).” Naturalmente, ele reconhece que “a justaposição desses critérios tende a criar uma ordem esburacada, muito próxima do caos”. O que está longe de ser um problema para quem se declara um discípulo do alemão Aby Warburg (1866-1929), historiador da arte e criador de uma famosa biblioteca em sua Hamburgo natal.

Transferida com a ascensão do nazismo para Londres, onde deu origem ao Instituto Warburg, essa coleção de milhares de volumes introduziu o impressionismo radical nas regras da biblioteconomia ao adotar o princípio organizador do “bom vizinho”. Segundo este, como explica Calasso, “na biblioteca perfeita, quando se vai em busca de um livro, acaba-se pegando um que está ao seu lado e que se revela ainda mais útil do que aquele que procurávamos”. Quando se trata de livros pertencentes a uma mesma coleção editorial, normalmente identificados por um projeto gráfico comum, a tarefa do organizador de bibliotecas é fácil — o autor defende que a integridade do conjunto seja preservada. Mas o critério também permite, por exemplo, que tomos de ciência e ficção científica — ou de botânica e jardinagem — fiquem lado a lado.

O autor parece mais interessado em bagunçar nossa biblioteca do que em organizá-la: ‘A melhor ordem só pode ser plural’

“Inevitável em algumas zonas, a ordem alfabética se tornaria letal se aplicada em todas”, afirma Calasso. É natural: ele vê as bibliotecas mais como organismos vivos do que como catálogos. Estamos no extremo final do arco de inteligência que tem, no marco zero, a biblioteca cênica feita de lombadas coladas em blocos de madeira, seguida pela que se organiza cromaticamente em suaves degradês. Os livros aqui precisam ser lidos, consultados, metabolizados (embora um gordo percentual de volumes ainda não lidos seja parte fundamental da receita), conversando borgianamente uns com os outros, batendo boca à moda italiana, formando alianças ou rivalidades. Todo esse tumulto se dá, claro, na cabeça do leitor, refletindo-se na organização espacial dos volumes, com a qual passa a estabelecer uma espécie de relação dialética. O desprezo de Calasso pela dimensão meramente decorativa ou fetichista dos livros é tal que não poupa colecionadores renomados: “O bibliófilo que nem sequer ousa cortar as páginas de uma primeira edição para não lesar sua integridade é o contrário do verdadeiro leitor”.

Maus vizinhos

A regra do bom vizinho tem como contrapartida a do mau. Um curador de biblioteca, ensina o autor de O inominável atual, deve ser impiedoso ao decidir quais livros serão excluídos das prateleiras depois de rejeitados pelos circunstantes — o que, no caso de volumes agraciados com “constrangedoras dedicatórias”, pode não ser nada fácil. Mas é preciso cuidado para que os expurgos não se deixem contaminar por esnobismo intelectual. Calasso chama de “muito entediante estirpe” aqueles que só admitem ler tomos canônicos e descartam os “livrecos”. E lembra que foram justamente estes, os livros de pouco prestígio cultural, os salvadores da lavoura quando, em 1944, o Instituto Warburg se viu ameaçado de fechar as portas e a Universidade de Londres decidiu incorporá-lo depois de comparar catálogos e constatar que cerca de 30% de seus títulos não existiam no British Museum — “em sua maioria livrecos, aquelas publicações de astrologia, ocultismo e outra duvidosa origem que o próprio Warburg tinha constantemente coletado, desde o início”.

Toda ordem será efêmera. A tradição incorporada nas estantes é desafiada o tempo todo, para incômodo do bom curador

É evidente que, num ambiente como esse, toda ordem será sempre efêmera, contingente. Mesmo porque livros continuam a ser publicados todos os dias, o que leva a tradição incorporada nas estantes a ser desafiada o tempo todo, para incômodo do bom curador. Escreve Calasso: “O leitor verdadeiro está sempre lendo um livro — ou dois ou três ou dez —, e a novidade chega como um incômodo” — que no entanto pode ser bem-vindo. Está escancarada a porta para todo tipo de idiossincrasia, e aqui o autor estica a corda ao recomendar encapar todos ou quase todos os volumes de uma biblioteca naquela “espécie de papel de seda que se chama pergaminho”. Motivo oficial: protegê-los do envelhecimento. Motivo real: tornar embaçadas e pouco legíveis as lombadas, o que “alivia quem vive no meio deles e não quer ser obrigado a perceber a qualquer momento a presença iminente de um determinado livro, preferindo achá-lo quase pelo tato, delicadamente mumificado”.

Quem escreveu esse texto

Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, é autor de A vida futura e A visita de João Gilberto aos Novos Baianos, ambos pela Companhia das Letras.