Amazônia, Meio ambiente,

Nação revelada

O fotógrafo Araquém Alcântara revisita meio século de andanças pelo Brasil e afirma sua crença no país como potência verde mundial

01set2020 | Edição #37 set.2020

“Pense em mim como o rio Amazonas e seus novecentos afluentes”, diz Araquém Alcântara em algum momento das três horas de nossa conversa ao telefone. “Sempre saio por um deles e, se você não me ajudar a retornar, sinceramente, não estou nem aí. Nesses afluentes tem muita história”, fala, com razão, o fotógrafo que completa cinquenta anos de carreira em 2020. Para celebrar o marco, ele parte neste mês de setembro para mais uma viagem à Amazônia (já são mais de cem), com o intuito de finalizar o livro Amazônia, a beleza e a destruição, a luz e as trevas (Vento Leste), a ser lançado na Feira de Frankfurt, na Alemanha, em outubro.

“Começo do alto, mostrando a exuberância, e desço para o superlativo, o mágico. Tudo na Amazônia é assim: lá tem a maior folha, a maior árvore, o maior peixe. Será uma obra histórica, pretensiosa”, conta sobre o livro de trezentas páginas que dialogará com grandes pensadores da Amazônia, como os naturalistas Alfred Russel Wallace e Henry Walter Bates, o biólogo Thomas Lovejoy, o cientista Carlos Nobre e o escritor Milton Hatoum.

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Será o 56º livro de sua carreira, que inclui títulos como Amazônia, finalista do Jabuti em 2006; Brasileiros, lançado no final de 2019 e cuja primeira edição já se esgotou (“acho que porque com a pandemia as pessoas passaram a ter outro tipo de observação, e a minha fotografia tem isso de confundir as paisagens política e poética”); e TerraBrasil, de 1998, que define como sua odisseia e cujas imagens estão expostas em museus como Masp (São Paulo), Pompidou (Paris) e British Museum (Londres). “Influenciado pelo fotógrafo Ansel Adams, percorri, todos os parques nacionais deste país. Demorei treze anos para competar a saga que redundou nesse que é o livro de fotografia mais vendido no Brasil”, orgulha-se.

Ele conta que ainda neste ano a revista suíça Du dedica uma edição especial à sua carreira e a editora Unicamp lança um livro sobre a semiótica em sua obra, com textos assinados por nomes como Eliane Brum; e, no ano que vem, a HBO filma uma série de seis episódios sobre seu trabalho. A seguir, ele fala de rios voadores, encontros divinos na floresta, bioeconomia e o projeto genocida que assola o país.

O que mais o impactou na primeira visita à Amazônia, nos anos 1970?

Ao adentrar a floresta, a evapotranspiração parece que entra em você. Você sobe torres de setenta metros para ver o amanhecer lá de cima e chega todo molhado, mesmo não tendo chuva. São os rios voadores, as partículas úmidas, o excesso de água que transpira pelas folhas das árvores. Você vai vendo a transpiração da floresta, a névoa, os bichos voando, as araras. É de uma magia inacreditável.

Como foi fazer lá, em 1979, sua primeira grande foto [uma onça saindo da água]?

Olha de onde vêm o mistério e a predestinação. Fui como freelancer fotografar a inauguração de uma revenda de pneus Goodyear. Estava tomando uma caipirinha e um cara falou ao outro: “E aquela onça, continua aparecendo?”. Aí meu kundalini fez ‘tóin!’, pulei da cadeira e fui para cima dele: “Desculpa, mas eu ouvi…”. E ele: “Ela está lá, cara. Impressionante como fica brincando no igarapé de Manacapuru no Xiborena na várzea do…”. E eu: “Peraí, calma, como é que é?”. Enfim, o cara morava lá, e você acha que eu não embarquei com ele? Dei um jeito de convencer meu chefe, prometi que voltaria a tempo e fui. No dia seguinte, saímos naquela rabeta e circulamos o dia inteiro… mas nada da onça.

Na outra manhã, o cara falou: “Olha, não fomos para os lados do norte. O que eu posso fazer, e você também, é não ir trabalhar”. Pensei que meu chefe ficaria louco, mas tive essa cumplicidade. Então subimos pelo outro lado e, entrando no igarapé, vi um movimento na água, uma cabeça enorme. Tive um frêmito da raiz dos cabelos à ponta dos pés: achamos a onça, brincando na água. Percebendo nossa presença, ela deu um pulo, agarrou um galho e o mordeu. Acho que foi uma validação eucarística.

E o seu chefe, como reagiu?

Quando cheguei ao porto, liguei para ele e fui recebido a pau e pedra! Hoje eu sou famoso e ele anônimo, mas ele era o todo-poderoso. Ele disse: “Porra, você está querendo me foder, mermão?”. Respondi que tinha a onça e ele falou: “O quê?! Amplia logo, vamos ter a maior moral”. Fui direto revelar a foto — ver aquela onça saindo foi um raro e indefinido prazer. Então cheguei para uma gringaiada bebendo na mesa, falei o que tinha, não entenderam nada, até que mostrei. Compraram por 2.500 dólares, e eu saí pela Zona Franca comprando tudo: colete, filtro, lente, papel, tripé, outra máquina… voltei para São Paulo profissional.

Seu livro Jaguaretê (2018) é dedicado à onça. Que simbologia ela tem?

Essa onça está na primeira foto do livro. Ela veio da determinação, da premonição, da busca, de uma impulsão criativa. A onça é o mais mítico e mais poderoso animal da Amazônia, a grande floresta.

Você normalmente já sai com o animal que quer capturar em mente?

As pessoas glamourizam o fotógrafo viajante. Veem aquele cara com 4×4, charuto na boca, o uísque dezoito anos, assistentes, a mulher sensacional… Que nada. O fotógrafo de natureza enfrenta toda sorte de adversidade. O perrengue todo. A solidão da mata, bichos perigosos, condições climáticas. Sofre que nem um cão. Tem que estudar a região, a biologia e os hábitos dos animais, ter um guia. Se não fossem os guias e os mais velhos, que esse governo está querendo matar, eu não teria 55 livros. São eles que me levam aos lugares, que dão as dicas.

Uma imagem característica é a de estar à espera, camuflado, estudando a posição do vento — às vezes você tem que mudar de lugar, porque o bicho não pode sentir seu cheiro. Não pode perceber seu movimento, não pode olhar nos seus olhos. Para fotografar bicho, você tem que ficar invisível. Mas, de vez em quando, você tromba com o bicho e é olho no olho. Isso tudo é filosófico.

Como é esse encontro tão íntimo com o animal? Já sentiu medo?

Tive alguns encontros que me demonstraram o que é o sagrado. Um deles foi com um lobinho no Pantanal. O que aconteceu comigo e com aquele lobo é coisa divina. Eu estava na beira de um lago, tinha perdido um guaxinim, e do nada ele veio, cansado, magro. Dava para perceber que tinha batalhado a noite toda, uma caça infrutífera. E aí tive o descortino — estava inspirado talvez, tudo faz parte do encontro — de virar de lado e pegar a grama como se a estivesse comendo. O importante era garantir que eu não virasse, senão ele sairia correndo. Ele se interessou e veio andando e, a uns quinze metros de mim, sentou para descansar e ficou me olhando.

Aí é que entrou o segredo: lembrei que tinha uvas-passas no colete e comecei a jogá-las por trás da minha cabeça. Um minuto interminável depois, ele resolveu pegar o docinho, e foi chegando mais perto. E aí peguei um monte de uva passa na mão e estiquei. Fui sentindo seu cheiro forte, vi que tinha uma verruga no nariz, e aí comecei a entrar dentro do bicho. Ele ficou a três metros de mim. Naquele momento, eu estava na conexão com tudo. Não tinha pensamentos. Quando o vazio se instaura, você só sente. A musculatura, a pulsação do sangue, as veias correndo, o tremor, o fremido, a alegria, o prazer. Esse é o êxtase. É o satori.

Já fotografou sob efeito de drogas?

Gostei muito dos LSDs que chegavam de Amsterdam quando era jovem. Mas usava do meu jeito. Para buscar. Esses paraísos artificiais, para um buscador, meu Deus! Lembro de quando me perdi da turma e achei um depósito de estatuetas quebradas de despacho de umbanda. Vi Iemanjá meio em água, meio em mato, e um arbusto completamente iluminado por vaga-lumes. Tive que me ajoelhar na mata e rezar. Nem aí com cobra. Entrei em êxtase. Mas olha, fotografar doidão é quase igual a não fazer nada [risos].

O que o inspirou a fotografar?

Comecei a fotografar por causa de um filme japonês, A ilha nua, do gênio Kaneto Shindô, que vi aos dezessete anos. Entrei no cinema indefeso e tive minha primeira grande epifania. Ele me tomou pelo lado do misticismo, da poesia, da quietude, da síntese. Fiquei transido no escuro. Quando saí, fui à praia, tirei os sapatos e, na beirada da água, veio outra epifania: uma voz dizendo “Bem que poderia dizer as coisas como Kaneto Shindô”. No dia seguinte, virei fotógrafo.

E foi fotografar o quê?

Sabe o que fiz? Peguei uma câmera emprestada e fui fotografar as putas do cais de Santos. Saí para a rua e vi uma encostada no ponto de ônibus, os grafites no muro, aquele clima de fim de trabalho, ela cansada. Aí fiz o que todo fotógrafo faz: fui chegando perto com cara de súplica, como quem diz “deixa?”, levantando a câmera. Foi a travessia mais longa da minha vida. Quando cheguei perto, ela perguntou se eu queria fotografar, falei que sim, e ela levantou o vestido, bateu no sexo e falou: “Fotografa aqui, então, seu filho da puta”. E eu apertei o botão.

Depois, você pegou uma época de ouro do jornalismo.

Que época! Você tinha uma semana para fazer uma matéria e espaços generosos. Eu me transformei em uma espécie de correspondente do Estadão e do Jornal da Tarde. E o Mino Carta entrou no JT e abriu espaço para imagem, para um novo jornalismo. Eu, o Marcos Faerman, o Randau Marques, o Carlos Monforte… nós éramos prolixos, ambiciosos e gananciosos. Sem o fotojornalismo, eu não seria o fotógrafo de combate que eu sou agora.

Existe fórmula para fotografar bem?

A exortação para os novos é que tenham vasto conhecimento. Na fotografia você coloca todos os livros que leu, todas as decepções. É um exercício de paciência e contemplação. O verdadeiro fotógrafo não vê apenas uma árvore, ele observa o espaço entre as folhagens. Ele conduz o espectador com sua composição, seu enquadramento, seu volume, suas linhas. Ele contempla para fazer o grande desabafo que é o clique. E o fotógrafo de natureza, além de ter o compromisso de ser defensor das belezas que vê, vai a lugares em que poucos vão pisar. Então ele tem que ser humanista, tem que lutar pela integridade desses lugares. Sua fotografia não é só para diletantismo, é para espalhar benefícios. Vejo as pessoas reparando mais nisso com o genocídio que está em curso.

‘Existe um nome para 100 mil mortos: Jair Bolsonaro. É incrível como o Brasil está na contramão’

Refere-se à atuação do governo?

Existe um nome para 100 mil mortos: o responsável é Jair Bolsonaro. Como é que um presidente da República, em uma canetada, impede assistência básica para comunidades tradicionais que não têm nada, que tomam água do rio? Não há respiradores e eles já não têm capacidade imunológica. Os esforços das ONGs e entidades de saúde precisam estar acompanhados de políticas públicas. É incrível como o Brasil está na contramão da história. A violação dos direitos indígenas é um crime de lesa-humanidade.

O líder indígena Ailton Krenak escreveu que estamos vivendo a “obra de uma mãe amorosa que decidiu fazer o filho calar a boca pelo menos por um instante; não porque não goste dele, mas por querer lhe ensinar alguma coisa”. Concorda?

Sem dúvidas. É o momento de refletirmos e nos reconciliarmos com a natureza, não tem outro jeito. Só haverá futuro se houver consciência ecológica. Um amigo, o escultor Frans Krajcberg, falava que fazenda é como se fosse holocausto. É o que eu penso. Derrubar em minutos uma quantidade incrível de um patrimônio que nem sequer foi estudado. Séculos de maravilhosa construção derrubados em instantes. E aí entra Euclides da Cunha: “O homem é um fazedor de desertos”. Como parar o desmatamento? Só com o engajamento de toda a sociedade.

Acredita na retomada da Amazônia?

Parece utopia, mas não é. Parece que caiu a ficha do mundo — e isso inclui empresários — para o fato de que a floresta em pé é mais lucrativa do que derrubada. A demanda da sociedade mundial é pelo fim do desmatamento. Darcy Ribeiro deu a letra há quinze anos em O Brasil como problema, em que dizia sentir a preocupação do mundo em relação à Amazônia. A floresta entra agora na bioeconomia, a nova palavra de ordem. É lucrativo incorporar políticas públicas ao conhecimento da natureza.

Evidentemente estamos vivendo um período de boçalidade total, mas é possível salvar a Amazônia com o engajamento da opinião pública mundial. E engajamento é algo que tem que acontecer na rua, na demonstração da revolta. Só falta eu botar uma túnica, subir no alto de uma pedra e falar “Olha, a Amazônia…”. Eu não sou messiânico, só acho que está na cara. O Brasil pode ser uma potência verde reassumindo o protagonismo que vinha antes dessa escuridão toda. Para isso, precisamos fazer a regularização fundiária, replantar, eliminar o desmatamento, recuperar a área degradada… Essa consciência está em curso e é o início da realização do pensamento, na época muito utópico, de Darcy Ribeiro.

Incomoda o desconhecimento do brasileiro em relação à Amazônia e seus 20 milhões de habitantes e centenas de etnias, idiomas e culturas?

A Amazônia tem que ser estudada logo cedo. As crianças têm que saber o que ela significa. Não formamos pessoas com consciência de pátria, com identidade. Meu trabalho caminha para isso. Não quero fazer fotos só para os arquivos da memória, quero fazer fotos que transformam — e tenho consciência de que serão tesouros, testemunhos, porque tudo está sendo destruído muito rapidamente. A Amazônia não é inexaurível. O brasilianista Warren Dean escreveu, em A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira, algo que deveria estar nos livros de história do futuro, aprovados pelo Ministério da Educação: “Crianças, vocês vivem num deserto; vamos contar-lhes como foi que vocês foram deserdadas”. Paulada, né?

O que você está lendo?

A invenção da natureza: a vida e as descobertas de Alexander von Humboldt, de Andrea Wulf. Humboldt era um gênio que entendeu tudo. E Brasil construtor de ruínas, de Eliane Brum, uma pessoa de quem gosto muito.

Como foi ser testemunha ocular da devastação da Amazônia?

Em 1970, quando comecei a fotografar, a Amazônia só tinha 2% de sua cobertura original destruída. Em 470 anos, de 1500 a 1970, apenas 2%. Incrível. E aí começou a avalanche da boçalidade. Em 2020, 20% da floresta já está em ponto de inflexão. E ainda se negam as consequências do aquecimento global! Participei de um evento na Universidade Princeton em que fizeram um cenário do mundo sem a Amazônia. O aquecimento da Terra subiria para 2,5% e o volume de chuva seria 25% menor. Não haveria sobrevivência saudável.

Você também registrou a degradação ambiental do litoral sul de São Paulo no início da carreira.

Tomei chuva ácida fotografando os fundos das indústrias em Cubatão, que era o lugar mais poluído do mundo. Como é que pode haver dezoito produtos químicos em suspensão no ar? Deu leucopenia em um monte de gente, crianças sem cérebro, árvores sem folhas. Também entrei na Mata Atlântica virgem da Jureia, e aí o [presidente João] Figueiredo desapropriou a região para a construção de duas usinas nucleares e meu trabalho ganhou ideologia.

‘O Brasil pode ser uma potência verde reassumindo o protagonismo que vinha antes dessa escuridão toda’

Fiz uma imagem que virou símbolo: meu pai ali segurando um quadro com esqueletos humanos em Hiroshima. Esse pai, aliás, que me deu uma compreensão do amor ao eterno, do respeito ao sagrado, de andar na floresta sabendo que está no Éden, no centro de todos os mistérios e de todas as verdades. Eu sou muito épico, meu pai também era assim. Então em 1980 eu viralizei sem internet com essa foto do meu pai, que correu o mundo. É isso o que tem que rolar em relação à Amazônia. Ela tem que entrar no pão nosso de cada dia.

Como se define enquanto fotógrafo?

Sou um fotógrafo de bichos, paisagem e gente — em qualquer ordem. Sou um fotógrafo do Brasil. Meu objetivo é revelar o Brasil, que é um país desmemoriado, até para os próprios brasileiros. E este país como dizia Tom Jobim, não é para qualquer um. É um país para profissionais. Escolhi o caminho com o coração, e nele viajo, sem fôlego. Minhas fotos vêm de uma profunda verdade interior e de uma incessante busca pela beleza.

Construí uma carreira de notoriedade internacional passo a passo, andando. O Brasil precisa de mais fotógrafos andarilhos. Você só capta o caráter de um povo se você entrar nele. Virei um fotógrafo andarilho para me aproximar do meu povo. Para entender a tormentosa caminhada do brasileiro. Vou para os ermos, os sertões, e lá é minha matriz criativa. A fotografia me permite ser caótico, sentir e captar várias coisas ao mesmo tempo e filtrá-las. O verdadeiro artista trabalha entre a profecia e a loucura. E agora eu vou voltar lá para o ponto zero.

Quem escreveu esse texto

Marília Kodic

Jornalista e tradutora, é co-autora de Moda ilustrada (Luste).

Matéria publicada na edição impressa #37 set.2020 em julho de 2020.