A Feira do Livro, Música,

Martinho da Vila: ‘o samba foi mal falado como o funk é hoje’

Com plateia lotada, o sambista e escritor carioca discutiu o golpe militar de 1964, músicas polêmicas e o apagamento da cultura negra no samba

30jun2024 - 11h53 • 01jul2024 - 18h09

Devagar, devagarinho, sem pressa, não é preciso correr. É assim que Martinho da Vila define os próprios passos no livro de memórias Martinho da vida (Planeta), tema de sua conversa com a jornalista Adriana Couto no fim da tarde de sábado, n’A Feira.

Com plateia cheia, o sambista e escritor carioca revela que seu batismo artístico se deu em terras paulistanas. “Nasci no Rio de Janeiro, mas para a música em geral, eu nasci em São Paulo, no Festival de Música da Record”. Em 1967, quando concorreu com a música “Menina moça”, Martinho José Ferreira fez nascer Martinho da Vila ao colocar, pela primeira vez em um festival de música brasileira, um samba partido alto. Ainda que permitida no festival, a música foi censurada durante a ditadura militar e só foi lançada por uma gravadora no terceiro álbum do artista.

Adriana Couto conversa com Martinho da Vila no Palco Praça (Matias Maxx)

O cantor conta que a música acabou não vencendo o festival, mas no ano seguinte as coisas foram inesperadamente diferentes e ele levou o prêmio maior com a música “Casa de bamba”. “Quando cheguei em casa, perguntei à minha mãe o que ela tinha achado. Ela me disse que a música do ano passado deveria ter ganho o festival, porque a vencedora dessa edição era mentirosa — ‘Aqui em casa todo mundo bebe? E eu bebo por acaso? Aqui se faz macumba?’ Ela era uma católica fervorosa”, disse o cantor, em meio aos risos da plateia.

A jornalista comenta que a casa de bamba descrita pelo carioca é uma casa muito brasileira. Segundo Adriana, outra coisa muito brasileira é a luta travada por um jovem negro no Rio de Janeiro, nascido na década de 40, que conseguiu atingir uma alta posição artística. “Para subir na escala social sendo negro é muito difícil. A classe dominante tenta a todo custo manter o pessoal de base por baixo, então sair dessa posição de base é subir um degrau depois do outro para, pelo menos, entrar na vida social geral.”

O cantor confessou acreditar que o racismo já foi pior, ou pelo menos considera que hoje seja menos escancarado pelos racistas porque “pega mal” ou é mais fácil de ser detectado com a popularização das redes sociais. “Muitos grupos não cantavam samba porque era ‘música de preto’. Isso até Noel Rosa subir o morro e incluir os temas de Ismael Silva na própria música e botar o samba no repertório”.

Martinho deu palinhas de suas músicas mais conhecidas, geralmente criadas a partir de uma musa como foco principal. Verdadeiras ou não, Martinho disse ser um dos compositores que, como alguns escritores, mistura ficção e realidade para compor letras. 

Pai de menina

Entre essas letras, “Mulheres”, que Adriana comentou ter se tornado polêmica por conta do machismo. “Minhas filhas foram centrais para repensar essas questões acerca da mulher e da luta contra diversos preconceitos. Aprendi muito com meus filhos. Mas esse negócio de ser um pai legal eu nunca fui, porque tratei meus rebentos como amigos, por ter percebido que havia uma distância enorme nas relações entre pais e filhos. Mas se você é amigo, eles te falam coisas e te pedem conselhos sem medo”, disse.

“E também posso dizer que a letra de ‘Mulheres’ não é minha, e inclusive até mudei o final para poder falar de um amor meio inconcluso, porque ela só descrevia aqueles homens que ficam se gabando entre amigos sobre as mulheres com quem se relacionam.” 

O escritor e sambista autografa sua autobiografia n’A Feira do Livro (Matias Maxx)

Como um bom griô — que na cultura africana representa um sábio que transmite arte, conhecimento, histórias, tradições e conselhos —, Martinho reflete sobre o apagamento histórico da cultura negra no universo do samba, que considera já ter sido mais forte no passado, mas que ainda passa por inúmeras tentativas de embranquecimento. “O samba foi mal visto e mal falado por muito tempo, assim como fazem com o funk hoje, que também é sobre jovens negros lutando por um espaço na cultura e na música brasileira”.

A Feira do Livro 2024

29 jun.—7 jul.
Praça Charles Miller, Pacaembu

A Feira do Livro é uma realização da Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos voltada para a difusão do livro no Brasil, e da Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais. O patrocínio é do Grupo CCR, do Itaú Unibanco e Rede, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, da TV Brasil e da Rádio Nacional de São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Jaqueline Silva

É estudante de Jornalismo na ECA-USP e estagiária editorial na Quatro Cinco Um.