A Feira do Livro,

Entre a mundanidade e o encantamento

O historiador Luiz Antonio Simas fala sobre o inesperado das ruas, a questão diaspórica no Brasil e o samba como documento histórico

08jun2023 | Edição #70

Vestido com uma camiseta com os dizeres “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”, Luiz Antonio Simas abre a mesa “A alma encantada das ruas”, mediada por Bianca Tavolari, professora, pesquisadora e colunista da Quatro Cinco Um, falando do orixá. “Exu é o princípio encarnado do movimento, da mundanidade, do que acontece na rua. É o senhor das grandes encruzilhadas. Eu acredito que o campo da cultura é uma encruzilhada. É o lugar da alteridade, do encontro com a diferença, do inesperado, do inusitado, do assombro e do espanto. Trazer a materialidade de Exu, o senhor do movimento, é importante. Por isso meu livro [Crônicas exusíacas e estilhaços pelintras, a ser lançado em breve pela Record] começa com ele e por isso abrimos esta mesa com ele.”

O historiador e professor falou então sobre a questão diaspórica no Brasil. “Toda diáspora, translado forçado, desarticula a identidade, quebra laços de sociabilidade, sequestra uma história, desarticula a proteção social. Toda diáspora é uma experiência de morte, física ou simbólica”, diz. “Mas o que me deixa impactado com a rua — a rua que eu frequento — é que se toda diáspora é uma morte, toda cultura de diáspora reconstrói aquilo que foi aniquilado. Não existe cultura de diáspora que não seja comunitária”, conta, citando como exemplo as escolas de samba, as rodas de capoeira, e os terreiros de umbanda.

Ele canta, então, versos do samba “Cem anos de liberdade, realidade ou ilusão”, da Mangueira, de 1988, que definem a abolição: “Será que já raiou a liberdade ou se foi tudo ilusão? Será que a Lei Áurea tão sonhada, há tanto tempo assinada, não foi o fim da escravidão? Hoje, dentro da realidade, onde está a liberdade? Onde está que ninguém viu?

Moço, não se esqueça que o negro também construiu as riquezas do nosso Brasil. Pergunte ao criador quem pintou esta aquarela. Livre do açoite da senzala, preso na miséria da favela”. Segundo Simas, é preciso entender que a rua está inscrita no documento da história não só no livro, mas na vivência das ruas. “No caso do Rio de Janeiro, o samba é o documento mais contundente a respeito do que a cidade é.”

Verticalização das cidades

Tavolari então o questiona sobre o problema da verticalização das cidades, tema de que trata em seus livros. “Você pode contar a história da verticalização a partir da pipa, porque ela morreu. Hoje, o lugar em que a garotada solta pipa é o cemitério. Ninguém vai ter a ideia de fazer um túmulo de 150 andares”, diz. Para ele, a cidade sinaliza as tensões e os dilemas da cotidianidade. “O asfalto matou a bola de gude. Precisa de terra. Ninguém pensa a cidade a partir da lógica da criança. A cidade ignora a criança. Hoje tem aplicativo para brincar de soltar pipa. É uma tragédia, uma catástrofe, uma hecatombe!”

Simas então discorre sobre o chamado de “direito de estia”. “Quem conhece a cultura da sinuca sabe. Isso é respeitadíssimo. Cultura de botequim, de zona”. O conceito consiste no perdedor do jogo de sinuca ganhar 10% dos ganhos para que consiga se alimentar e voltar para casa. “É o código de honra da velha sinuca. Quando eu falo da bola de gude, da pipa, é direito de estia. Onde está? Quando a gente pensa na cidade, tem que pensar no código de honra da velha malandragem da sinuca. Tu vai levar tudo?”, questiona.

A conversa então envereda para a ocupação encantada dos espaços, segundo a qual os espaços públicos são praticados na dimensão do encantamento da experiência e os terreiros não são estritamente espaços fixos de práticas religiosas. Simas exemplifica com o viaduto de Madureira: “É um horror, mas um dia a rapaziada descobriu que embaixo tinha uma sombra bacana e começou a jogar uma capoeira, um jongo, até que começou a ter um baile charme. Quando a pessoa chega debaixo do viaduto e bota uma caixa de som, o pau come e a festa começa, aquele território é terreirizado”. Ele cita também o sambódromo do Rio de Janeiro: “A Marquês de Sapucaí é horrível. É um cimentódromo, não tem uma árvore. Mas quando uma escola de samba se prepara, o repique vem, a baiana dá um giro no sentido anti-horário, aí terreiriza. Isto aqui, esta praça, também está sendo terreirizada”.

Ele discorre então sobre a máxima de adequar para transgredir, em que as culturas de rua operam — e prosperam — no vazio, na fresta. “Como a bateria da Portela foi fundada no dia de São Sebastião, sincretizado com Oxóssi, ela toca o agueré, que é o ritmo de Oxóssi. A Portela pode fazer samba sobre o espaço sideral, o Pacaembu, Napoleão, mas ela sempre vai estar batendo pra Oxóssi na avenida. Isso é adequação transgressora.”

O historiador conclui lembrando que cidadania não é algo apenas institucional, mas é a possibilidade de praticar a cidade. “É perceber que não adianta você se matar de trabalhar para cumprir metas porque caixão nao tem gaveta para você guardar o que acumulou. O contrário da vida não é a morte, é a não vida.”

A Feira do Livro acontece de 7 a 11 de junho na praça Charles Miller, no Pacaembu, em São Paulo.

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Quem escreveu esse texto

Marília Kodic

Jornalista e tradutora, é co-autora de Moda ilustrada (Luste).

Matéria publicada na edição impressa #70 em maio de 2023.