A Feira do Livro,

A democracia não é mais erodida com tanques na rua

Pesquisadores debatem as principais táticas por meio das quais líderes autocratas tomam poder ao redor do mundo

11jun2023 | Edição #70

“A democracia hoje não é mais erodida com tanques na rua, mas por dentro”, diz Marina Slhessarenko Barreto, pesquisadora do Laut (Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo) ao lado de Fernando Romani Sales e Mariana Celano de Souza Amaral. O trio conversou com Conrado Corsalette, co-fundador e editor-chefe do Nexo Jornal, sobre as estratégias extremistas para dizimar as democracias na mesa O caminho da autocracia, que divide o título com o livro escrito pelo Laut e recém-publicado pela Tinta-da-China Brasil, editora da Associação Quatro Cinco Um.

Barreto diferenciou a autocratização brasileira das demais ao redor do mundo, como a turca e a norte-americana, chamando a atenção para a perspectiva do Sul Global, e defendeu que se deixem de lado as visões macro que tentam totalizar experiências distintas. Amaral também falou sobre as técnicas de erosão mais finas, como a manipulação do direito e da ordem jurídica, mas pontuou haver ainda o uso da violência, sobretudo por meio de forças que têm o monopólio da segurança e que servem à manutenção de projetos autoritários, caso da atuação da Polícia Rodoviária Federal nas últimas eleições presidenciais no Brasil.


O pesquisador do LAUT Fernando Romani Sales [Guilherme Rocha/Divulgação]

As mudanças econômicas como elemento-chave para pensar as ondas autocráticas foram destacadas por Amaral: “Não me parece ser à toa que a última onda de autocratização veio depois da crise de 2008”, disse, sendo lembrada por Barreto da primeira onda após a crise de 1929. “O aprofundamento do neoliberalismo traz a reboque também o crescimento da extrema direita, a volta do pensamento conservador e reacionário.”

Os pesquisadores citaram três pilares por meio dos quais se instaura a autocracia: a educação, a segurança e o espaço cívico. “Na educação básica percebemos duas das principais estratégias de ataque: o combate a uma suposta doutrinação da esquerda, com narrativas como a de proteger as crianças da educação sexual, e o revisionismo histórico, com a proposta, por exemplo, de alterar livros científicos e didáticos para dizer que a ditadura foi um movimento de apoio popular”, disse Sales. Já o ensino superior, segundo o pesquisador, sofre ataques à sua autonomia por ser o local onde floresce o pensamento crítico e o debate político.

Amaral comentou a ampliação da vigilância e a diminuição da privacidade como táticas autocráticas na segurança, citando como exemplo emblemático o caso da Índia, em que houve uma coleta massiva de dados biométricos da população, implementada de maneira quase compulsória para garantir o acesso a direitos básicos. Ela falou também sobre a instauração do pânico moral como método: “Nas autocracias pega-se um determinado grupo para colocar como inimigo social que precisa ser dizimado. Na Hungria são os imigrantes, na Índia são os muçulmanos e no Brasil foi o que Bolsonaro entendia como esquerda”, diz, lembrando a fala do ex-presidente de “fuzilar a petralhada”.

No campo do espaço cívico, Barreto citou o exemplo do Solidariedade, federação sindical polonesa que foi importante para a queda do muro de Berlim e da União Soviética, mas que hoje tem um discurso capitaneado pela extrema direita. “Uma liderança que foi extremamente importante para a história da redemocratização europeia hoje fala que os LGBTs devem ser excluídos da sociedade”, disse.


A pesquisadora do Laut Marina Slhessarenko Barreto [Guilherme Rocha/Divulgação]

Amaral apontou também a técnica de Bolsonaro de colocar o STF no lugar de um inimigo a ser combatido como forma de reforçar a retórica de que o ex-presidente precisava proteger seu governo e o povo precisava protegê-lo, algo que comparou ao deep state de Trump. “Isso erode a legitimidade do judiciário e torna o caminho do aparelhamento muito mais fácil.”

A não reeleição de autocratas também foi abordada pelos pesquisadores como algo que não deve ser tomado como uma vitória absoluta: “Não podemos apagar aquela luz de alerta, pensar que estamos a salvo e que as instituições estão funcionando perfeitamente”, advertiu Sales. “Um dos grandes desafios é enxergar que atores e instituições que têm atuação antidemocrática continuam existindo e pensar formas de combater esse extremismo político”, disse, observando que o bolsonarismo ainda tem capital político e social forte.


A pesquisadora do LAUT Mariana Celano de Souza Amaral [Guilherme Rocha/Divulgação]

O encontro terminou com uma reflexão dos pesquisadores a respeito da democracia que queremos. “Basta uma democracia formal que tenha eleição a cada quatro anos ou a gente quer dar um sentido mais pleno à palavra, uma democracia plural, em que as pessoas tenham trabalho digno, moradia, condições mínimas de existência, que vivam em vez de apenas sobreviver?”, questionou Amaral. “Precisamos que as pessoas que pensem diferentemente estejam no lado da democracia, senão não jogamos o mesmo jogo e não temos uma linguagem em comum”, concluiu Barreto.

A Feira do Livro acontece de 7 a 11 de junho na praça Charles Miller, no Pacaembu, em São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Marília Kodic

Jornalista e tradutora, é co-autora de Moda ilustrada (Luste).

Matéria publicada na edição impressa #70 em maio de 2023.