Música,

O cronista da madrugada

Em entrevista, o músico Alceu Valença fala dos seus projetos musicais, recita um poema de sua autoria e conta do seu livro de crônicas perdido em um táxi

22jun2021 | Edição #47

Alceu Valença resguarda consigo inúmeras influências de sua São Bento do Una (PE). Do contato com a poética popular à arte produzida por violeiros, cantadores, cordelistas e escritores de sua terra natal. Além das canções que fazem parte da história da música brasileira, Alceu também enveredou pelo cinema com o longa A luneta do tempo (2014), atuou, formou-se em direito, agitou muitos carnavais e, nos seus “surtos criativos”, escreve crônicas e poemas – em 2015, inclusive, publicou o livro Poeta da madrugada, pela editora Chiado.

Nessas mais de quatro décadas de trajetória, o artista já levou sua música aos quatro cantos do Brasil e do mundo. Encontrar tempo livre na agenda, sempre foi difícil. Mas na quarentena, aos 74 anos, ele acabou reconectando-se com o violão, companheiro de tantas composições. Quando os barulhos da cidade davam lugar ao silêncio, Alceu começava a tocar e logo perceberia que, não por acaso, a sequência musical formava uma espécie de “roteiro de cinema”, como ele define. “A moça da praia de Boa Viagem”, de “La Belle de Jour”, também apareceria na “Mensageira dos Anjos” “com seu cabelo lilás”. Versos de “Táxi lunar” ligavam-se à “Estação da Luz”. Assim, surgiria a ideia do novo álbum Sem Pensar no Amanhã, em que revisita esses e outros sucessos na voz e violão.

Por telefone, em entrevista à Quatro Cinco Um, o compositor relata sua antiga relação com a leitura, revela seu processo criativo, lê um poema de sua autoria e comenta futuros projetos.

Como é sua relação com a leitura? De que maneira ela costura seus dias?
Dia desses, até fiz uma live e estava na minha biblioteca. Tenho uma vasta biblioteca porque fui um leitor voraz, nem sabia que era tanto. Meu tio Lívio me apresentou Fernando Pessoa, através de um disco do ator português João Villaret. Agora dá até para ouvi-lo declamando pelo Spotify. “Não sou nada/ Não quero ser nada/ Apenas tenho em mim todo sentimento do mundo” [com sotaque português, declama uma mistura de “Tabacaria”, de Álvaro de Campos, e “Sentimento do mundo”, de Carlos Drummond de Andrade]. O gosto que eu já tinha pela poesia, ficou maior ainda. Do Brasil, conhecia a poesia de Drummond, do próprio Vinícius e do nosso pernambucano Carlos Pena Filho, que foi meu vizinho. Aos quinze, dezesseis anos comecei a ler muito, porque queria ser um “intelectual” [risos]. Primeiro, fui jogador de basquete, da Seleção Pernambucana de Basquete. Depois de entrar na faculdade, ainda joguei e fui vice-campeão brasileiro universitário. Mas, depois estava deixando o basquete. Lia para caramba, tudo da literatura brasileira.

Minha família é de São Bento do Una e per capita lá tem mais escritores do que em qualquer canto! Por exemplo, você vai encontrar meu tio Geraldo [Valença], que até já musiquei um poema dele chamado “Junho” [está no álbum 7 Desejos, lançado em 1992]. Ele tem dois livros, um deles chama-se A rosa jacente. Também tem Gilvan Lemos, que tem muitos livros, entre eles Emissários do diabo; Alfeu Valença e mais uma quantidade inacreditável de escritores. Então, vivi dentro de um ambiente de cultura o tempo todo. Tanto de cultura, vamos dizer assim, “clássica” como também o meu avô paterno fazia cordel. Esse não era o trabalho dele, ele não era um profissional do cordel, mas fez um chamado Patativa e Azulão, com um tio meu.

Logo depois, entrei na faculdade de direito e comecei a escrever poemas. Muitos deles foram publicados no Jornal do Commercio e no Diario de Pernambuco. O tempo não estraga a obra quando ela é de sentimento e verdadeira. Quando fiz meu livro Poeta da madrugada, em 2015, pela editora Chiado, de Portugal, coloquei várias dessas poesias que tinham sido publicadas. Essa parte de minha vida, eu não guardei nada. Minha mãe e minha irmã guardaram tudo meu. Atualmente, minha irmã me manda poesias que fiz escritas à mão. Algumas eu também batia na minha Olivetti.

Mas te digo uma coisa: tenho aqui, no meu celular, livros de crônicas. Escrevi um que se chamava Inacreditáveis histórias verdadeiras, sobre coisas que você não pode imaginar e são verdadeiras. Tem pessoas que estiveram comigo naqueles momentos. Fiz o livro, ia lançar, ele estava no computador já há um bocado de tempo. Yanê [Montenegro, esposa e produtora] vinha do aeroporto e deixou o computador dentro do táxi. Mas o táxi não devolveu o computador.

Com o computador foram também essas crônicas.
Agora, tenho aqui muitas crônicas e poesias. Vou até ver se consigo ler alguma para você. Olha aqui, “Poema insone”. 2021, mas talvez eu já tenha feito alguma mudança antes.

Noite negra, negra noite, não me negues nem me açoites
Tu és misteriosa como as bruxas que habitam sobrados abandonados
Mal-educada, antipática, descompensada,
Irmã da insônia, do pânico e do medo,
Senhora dona dos segredos, assombrações e lembranças guardadas em HDs pelos cartões de memória do meu cérebro de criança
Vagarosa, chula, autoritária, pedante, mulher de alma atormentada
Vigia do tempo e das horas
Do tudo e do nada
Amiga íntima dos fantasmas que habitam becos, esquinas, noturnas calçadas
Arrogante, amante da lua, raquítica, esquelética, indiscreta e fria
Por favor, me tires dessa cama, que eu te prometo mais adiante seguir teus passos até a hora que o astro-rei se levantar na minha pequenina e primal São Bento
Voltemos no tempo, aonde escondestes o menino alegre e traquino que há anos carregas contigo?
Tadinho, coitado
Hoje, vive sozinho, abandonado a vagar por corredores misteriosos e indecifráveis
Noite negra, negra noite, bruxa, cruel, covarde, senhora dona das lembranças
Saudade dos relógios de algibeira e carrilhões seculares
Hoje, usa somente modernos celulares onde o tempo não adianta nem atrasa um só segundo
Noite negra, negra noite, tristonha, magra, fria, preguiçosa e vazia
Dias a se arrastar por becos sujos e sombrios
Me causas arrepios, calafrios, desgraçada, pois carregas contigo angústia, ansiedade e pavor a quem se encontra rolando insone deitado na cama
Que horror, noite covarde, dona de pesadelos, labirintos, vielas, novelos, conventos, cavernas
Por favor, vá embora, megera, cruel, desgramada
Mesmo assim, te desejo boa noite.

Alceu, conta um livro bem marcante para você.
Emissários do diabo, do meu primo Gilvan Lemos.

E como nasce um verso seu?
Um verso nasce de uma maneira natural. Não faço nada programado. Quando eu estava fazendo os poemas do meu livro, estava com insônia. Yanê diz que tenho “surtos criativos”. Quando começo a fazer um filme, como fiz A luneta do tempo, passei anos e anos feito um maluco a escrever aquele filme, aquele roteiro. O tempo todo só pensava nisso. Quando estava em Portugal, eu estava insone. Lembro que eu botava o computador ali e começava a escrever. Todo dia, ia dormir às três, quatro horas da manhã. Lá, era um silêncio muito grande. Eu escrevia, aí, Yanê passou por mim, falou: “Você é o poeta da madrugada”. Alguns dias depois, por coincidência, ela foi encontrar com uma amiga que estava lá [em Portugal] e, de repente, chegou a diretora da editora Chiado. Ela mostrou o livro à pessoa e por uma sorte eles lançaram em todos os países de língua portuguesa.

O que impulsiona sua criação artística?
O surto criativo [risos]! Vamos dizer… Estou andando dentro de um carro, viajando no alto Sertão ou, então, no interior de São Paulo e, de repente, uma coisa vem à minha cabeça [Alceu solfeja uma melodia]. Peço para gravarem e, pronto, gravou! O grande problema é que não sei muito pegar aquilo que já gravei para poder ouvir novamente. Agora mesmo, Ya estava dizendo para eu fazer uma letra numa música que fiz aqui, que ela e Rafael, meu filho, dizem que é linda. Quando essas coisas vêm de repente, eu posso pegar uma música e fazer. Mas de encomenda não faço, não. Acho que a arte, na minha cabeça, é uma explosão de sentimentos da alma. Ela vem de dentro da alma. Por exemplo, eu poderia estar todo dia fazendo um poema, mas não. Só vou fazer quando tenho vontade. Mas tem determinados momentos que a arte também acaba com o vazio. Por exemplo, se estou sem fazer nada em uma estrada e lá vem a letra da música. Ou, se estou aqui em casa com o violão e “opa!”, vem a música. É dessa maneira, ela preenche o vazio. Não estou fazendo nada e, de repente, vem a tal da inspiração.

Nas suas composições, a letra ou a melodia chega primeiro?
Quase sempre letra e música são ao mesmo tempo. Quando é para colocar a letra, se estiver com uma pessoa amiga… Por exemplo, se eu encontrar com Geraldo [Azevedo], é uma coisa natural. Quando compus com Vicente Barreto “Morena Tropicana” e também “Cabelo no Pente”, naquele momento, eu ia muito a São Paulo. A gente se encontrava muito, ia a bares, restaurantes, ficava conversando com amigos. De repente, aparecia uma música dele, eu fazia a letra. Mas quando não tenho o contato físico, é meio complicado. Quando fica a pessoa lá e eu aqui, não consigo ter esse tipo de “onda”.

Além do novo Sem Pensar no Amanhã, lançado há poucos meses, você está preparando outros projetos?
Gravados já tem dois. Era Verão é o nome do segundo disco depois desse; o terceiro, que sou eu e Paulinho [Rafael], até agora, ainda não tem nome. Nesse, boto a voz e ele, viola ou guitarra. É somente com um instrumento. E depois tem outro projeto que vou esperar. Vai ser um disco bem mais São Bento do Una, bem mais Sertão profundo, com músicas minhas e de Luiz Gonzaga.

Será que podemos esperar um dia o livro com suas crônicas?
Até que vou pegar nessa história depois. Vou ver [risos].

Quem escreveu esse texto

Erika Muniz

É jornalista cultural.

Matéria publicada na edição impressa #47 em maio de 2021.