(Celine Nieszawer/Divulgação)

Literatura Francesa, Trechos,

Marcas políticas no amor 

Em Velar por ela, livro vencedor do Goncourt 2023, Jean-Baptiste Andrea retrata uma relação de amor e amizade impactada pelas tensões de classes durante a ascensão do fascismo italiano

16dez2024 • Atualizado em: 14jan2025

Ambientado em um contexto onde o fascismo fincava suas raízes na Itália, o romance que levou o prêmio Goncourt em 2023 mostra o amor e a amizade entre dois jovens que vivem em condições sociais opostas. O livro, publicado neste ano no Brasil pela Vestígio em tradução de Julia da Rosa Simões, faz um retrato social do período a partir do relacionamento dos protagonistas Mimo e Viola.

Michelangelo Vitaliani, ou Mimo, é um jovem escultor francês, filho de imigrantes italianos. Pobre, órfão e maltratado pelo tio alcoólatra, Mimo enfrenta uma dura realidade social, mas encontra alívio na sua relação com Viola, filha de aristocratas que tenta se tornar uma mulher independente.

No romance, Jean-Baptiste Andrea cria uma autobiografia ficcional de Mimo, que narra como suas vivências são marcadas pelo contexto político e social da época. Entre encontros e desencontros, ele e Viola constroem um companheirismo que tenta resistir às tensões daquele período. 

Leia um trecho a seguir:

Trecho de ʽVelar por elaʼ

Dois acontecimentos quase simultâneos, lançados ao acaso no caldeirão do outono de 1921, fizeram minha vida explodir novamente. Em 7 de novembro, dia de meu aniversário de dezessete anos, Mussolini criou o Partido Nacional Fascista, destinado a federar os ras, pequenos chefes que espalhavam o terror por todo o país. Neri deve ter visto uma mensagem nisso, pois minhas ferramentas voltaram a desaparecer, voltei a receber cotoveladas quando alguém passava atrás de mim no refeitório, e até mijaram em minha cama. Um dia, Maurizio flagrou Uno caminhando atrás de mim, imitando meu balanço, enquanto todos seguravam o riso. Ele o pegou pelos cabelos e o arrastou até o ateliê de corte, onde o nocauteou e colocou na frente da serra circular, dizendo que da próxima vez ele não teria a mesma sorte. Metti reuniu a todos, furioso, e nos cobriu de perdigotos. Na próxima vez, ele responderia com severidade. Eu não tinha dinheiro – gastava quase tudo nas nossas saídas noturnas – e nenhum lugar para ir. Tive que me calar, e Neri continuou sua campanha, intocável que era. Apenas Uno se manteve na linha e não falava com mais ninguém. Fiquei grato a Maurizio, mas também um pouco ressentido. Sua intervenção dava a impressão de que eu não era capaz de me defender.

Então a carta chegou. Uma manhã, sem fazer alarde, em um sopro de inverno com cheiro de carvão. Meu nome e meu endereço em tinta verde, uma cor de hortelã que só uma pessoa no mundo usava – Viola fazia a própria tinta, uma paixão que lhe restara da fase “química”. Eu a mantive a manhã inteira sob o casaco, e subi correndo na hora do almoço para lê-la em meu quarto, depois de trancar a porta com chave.

Meu querido Mimo,

Recebi suas várias mensagens. Desculpe não ter respondido mais cedo. Espero que não leve a mal esta carta, mas prefiro que não me escreva mais, pelo menos por enquanto. Tive muito tempo para pensar, no hospital, e percebi que fui egoísta. Arrastei você para meus jogos infantis, fiz muito mal a muita gente, a começar por mim. Chegou a hora de amadurecer e deixar tudo isso para trás. Ficarei feliz em ver você umdia desses, para um café na Villa talvez, quando eu estiver melhor. Provavelmente riremos de nossos sonhos de antigamente. Por enquanto, é inconveniente que me escreva sem que eu o tenha convidado a fazê-lo, acredito que vá entender. É preciso saber crescer.

Tudo de bom para você,

Viola Orsini

Soltei uma risada, uma risada nervosa que me valeu  um olhar preocupado de Zozo pelo retrovisor. Tínhamos acabado de chegar a Pontinvrea. As luzes de uma estalagem brilhavam, alaranjadas e acolhedoras, na tempestade.

– Pare aqui.

– Aqui? Mas por quê?

– Para beber.

Zozo estacionou na praça em frente ao estabelecimento, sob um plátano. Tínhamos apenas vinte metros a percorrer, mas chegamos encharcados. Pedi duas cervejas e mergulhei na minha. Uma hora antes, minha raiva era um bloco de granito. Preto e luzidio, anguloso. Mas era uma ilusão, outro sortilégio de Viola. Quanto mais nos afastávamos de Pietra, mais o feitiço enfraquecia, e meu bloco de granito se revelava como realmente era: um simples monte de areia. Por mais que eu tentasse me segurar a ela,  minha raiva escapava por entre meus dedos. Depois de uma segunda caneca, não restava mais nada.

– Não vamos para Milão, certo?

Eu sorri para Zozo e seu ar desolado.

– Não.

– Você quer que eu o leve de volta agora?

– Vamos dormir aqui. Estou com frio e cansado.

Voltamos pela manhã. Tome outra caneca.

Fomos dormir pouco depois da meia-noite, em 1 de junho de 1946, um pouco embriagados. A casa, um antigo moinho de pedra cinza, ficava acima do rio. Zozo escolheu uma cama, eu a outra. Não me lembro de meu sonho, um sonho pesado e pegajoso em que eu tentava escapar de um perigo indistinto. Houve um tiro. Ou uma explosão.

Quando abri os olhos, estava completamente escuro. Eu não estava em minha cama, mas no meio do quarto. De bruços, com a boca cheia de poeira. Minhas mãos sangravam. Zozo tossia, de quatro a meu lado. Ele tentou dizer alguma coisa, balançou a cabeça, voltou a tossir. O ar estava denso como gesso. Precisávamos de ar puro. Sair dali.

Sangue escorreu por meus olhos. Virei-me para a janela.

Não havia janela, nem parede, apenas um imenso pedaço de noite.