Literatura Francesa, Trechos,
Quando Eddy se tornou Édouard
Mudar: método, de Édouard Louis, relata o amadurecer de Eddy Bellegueule (nome de batismo do autor) em meio à pobreza, homofobia e violência
13dez2024 • Atualizado em: 14jan2025Este não é o primeiro livro de Édouard Louis que retrata Eddy Bellegueule. O personagem, presente desde a sua primeira publicação, O fim de Eddy (2014), tem o mesmo nome que foi atribuído ao escritor francês em seu nascimento. Eddy nada mais é do que uma versão do autor antes das transformações que o tornaram o escritor aclamado que é hoje — como ele bem narra em Mudar: método, publicado em fevereiro de 2024 pela Todavia em tradução de Marília Scalzo.
Os processos dolorosos enfrentados pelo autor são narrados de forma crua ao longo do livro. Pobreza material, violência sexual e homofobia são algumas realidades vividas por Eddy durante sua infância e adolescência.
A tensão de classes é um elemento determinante na construção da mudança do personagem no desenrolar da narrativa: o grande desejo de Eddy é se libertar da condição de operário fabril. Mudar: método narra essa trajetória que o levou a se transformar no escritor Édouard Louis.
Leia um trecho a seguir:
Trecho de ʽMudar: métodoʼ
Será que preciso contar para você o começo da história mais uma vez? Cresci num mundo que rejeitava tudo o que eu era, e vivi isso como uma injustiça porque — é o que repetia para mim centenas de vezes por dia, até cansar —, vivi o mundo como uma injustiça porque eu não tinha escolhido ser o que era.
Já contei, mas devo retomar tudo na ordem, prometi a mim mesmo que faria isso, desde os primeiros anos da minha vida o problema foi diagnosticado: quando comecei a me expressar, a aprender a falar, a me mover no mundo, ouvi as interrogações se multiplicarem à minha volta. Por que o Eddy fala assim, igual a uma menina, mesmo sendo menino? Por que ele anda igual a uma menina? Por que vira as mãos quando fala? Por que olha desse jeito para os outros meninos? Será que ele não é meio viado?
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Eu não tinha escolhido andar daquele modo, falar daquele modo, não entendia por que tinha aqueles trejeitos — é o que as pessoas da cidade diziam, Os trejeitos do Eddy, o Eddy fala cheio de trejeitos —, não entendia por que esses trejeitos haviam sido impostos a mim, ao meu corpo. Não sabia por que era pelos corpos de outros meninos que eu era atraído e não pelos das meninas como era esperado de mim. Eu era prisioneiro de mim mesmo. À noite, sonhava em mudar, em me tornar outra pessoa, e talvez tenha sido nesses primeiros anos da minha vida que a ideia da mudança se tornou tão importante para mim.
Você foi um dos primeiros a ficar preocupado. À noite, quando ia se deitar no quarto com a minha mãe, eu ouvia você dizer a ela — não havia portas entre os quartos, comprar portas teria custado muito caro para nós e você dividiu os quartos com cortinas achadas no brechó da nossa cidade. Eu sentia o cheiro dos cigarros que você fumava um atrás do outro na sua cama, a fumaça chegava até mim, e principalmente ouvia sua voz que viajava pelo interior da escuridão, Por que o Eddy fala assim? Nós não criamos ele para ser viado, eu não entendo. Ele não pode agir um pouco de maneira normal?
Viado. Aos cinco ou seis anos entendi que essa palavra me definiria e me acompanharia pelo resto da minha existência.
O que você não sabe, porque eu escondia de você, é que essa palavra me seguia por todos os lugares, não apenas em casa, mas também nas ruas da cidade, na escola, por toda parte, e que você não era o único que estava preocupado.
(Ou será que você tinha entendido, mas não dizia para se proteger da verdade?)
O que você também não sabe, é que o insulto fazia com que todo o resto fosse insuportável para mim, a pobreza, nosso estilo de vida, o racismo constante na cidade, como se a exclusão me obrigasse a inventar um sistema próprio de valores — um sistema no qual eu teria meu lugar.
Quando à noite minha mãe nos dizia que não tinha mais nada para comer, porque faltava dinheiro, a fome ficava ainda pior por causa do Insulto. Quando não havia mais lenha para aquecer a casa, eu sofria mais violentamente de frio do que os outros por causa do Insulto. Quando ouvia as mulheres na praça ou na padaria dizerem Tem muito estrangeiro na França, a gente só vê negros por todo lado, eu as desprezava e ficava espontaneamente do lado daqueles que elas queriam oprimir e destruir.
Não sei como é possível ter ideias tão precisas e, de certa forma, tão adultas e tão anacrônicas na infância, mas, me lembro, eu queria ir embora da cidade e ficar rico, ser renomado e poderoso porque achava que esse poder que adquiriria com a riqueza ou com a fama seria uma vingança contra você e o mundo que me rejeitara. Eu poderia olhar para todos aqueles que tinha conhecido na primeira parte da minha vida, você e todos os outros, e dizer, Vejam onde estou agora. Vocês me insultaram, mas hoje sou mais poderoso do que vocês, vocês se enganaram me tratando como fraco e me desprezando e vão sofrer por causa dos seus erros. Vão sofrer por não terem me amado.
Eu queria vencer para me vingar.
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