Literatura Negra,
Sem concessões
Escritora e cantora camaronesa, Léonora Miano critica o feminismo, refuta o afrofuturismo e repensa passado, presente e futuro da África
29out2024 • Atualizado em: 05nov2024 | Edição #87 novNem feminista tampouco afrofuturista. Com uma obra de mais de duas dezenas de publicações, a escritora, cantora e dramaturga Léonora Miano dedica-se a pensar passado, presente e futuro da África a partir de uma epistemologia africana e de sua diáspora, sem concessões a nomenclaturas ocidentais, como defendeu sob aplausos na Festa Literária Internacional de Paraty, em outubro, numa mesa com a escritora brasileira Eliana Alves Cruz.
Léonora aproveitou a passagem pela Flip para se dedicar a uma de suas obsessões: mapear os traços da herança africana. No passeio ao Quilombo do Campinho da Independência, a vinte quilômetros de Paraty, onde visitou lojas de artesanato, tomou suco de juçara, comeu feijoada e banana frita, que, disse, é a mesma dos lanches de sua infância nos Camarões.
Nascida em uma família burguesa em Douala, ela deixou os Camarões aos dezoito anos para estudar literatura inglesa na França e atuar como cantora de jazz e blues. Despontou na escrita em 2005, com o romance L’intérieur de la nuit (O interior da noite, inédito no Brasil) acumulando prêmios desde sua estreia.
Em romances, ensaios, textos autobiográficos e peças de teatro, Léonora reflete sobre deportação transatlântica — como se refere ao tráfico de pessoas escravizadas —; sexualidade e prazer feminino; panafricanismo; religião e colonialismo; emancipação das mulheres e branquitude, num posicionamento que fez dela uma das mais subversivas da literatura francófona, adorada por escritores como o senegalês Mohamed Mbougar Sarr.
Com apenas dois livros publicados no Brasil até pouco — Contornos do dia que vem vindo e A estação das sombras, ambos pela Pallas —, Léonora tem agora uma amostra significativa de sua obra em três lançamentos, e mais três previstos para 2025.
No autobiográfico Stardust, ela descreve o ano em que viveu com a filha em um abrigo para mulheres em situação de rua em Paris. Escrito quando ela tinha 27 anos, o livro ficou engavetado por mais de duas décadas, pois ela “não queria ficar conhecida como a escritora sem-teto”.
‘Não quero ser tratada como alguém que deva só receber lições de outras pessoas’
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No ensaio A outra língua das mulheres, defende que as africanas subsaarianas têm suas próprias referências ancestrais, a despeito das “ondas” feministas do Norte global. Já no romance Vermelha imperatriz, projeta uma África poderosa em 2100 sem, no entanto, aderir ao afrofuturismo — gênero que para ela é estritamente estadunidense.
Para o ano que vem, a Pallas promete os ensaios O oposto da branquitude e Afropea (sobre descendentes de africanos na Europa), além da ficção As aventuras da xoxota, monólogo adaptado para o teatro pela própria autora.
Desde 2019 vivendo em Lomé, no Togo, Léonora mantém ainda uma editora independente, a Quilombo, pela qual publica pessoas africanas e pretende lançar também brasileiras, como revelou no papo com a Quatro Cinco Um.
Por que você nega que Vermelha imperatriz seja afrofuturista?
O afrofuturismo foi uma maneira da diáspora afro-americana inventar um tipo de ficção científica que lhes permitisse produzir narrativas emancipatórias. Não pertenço à diáspora. Mesmo que tenha vivido como imigrante, sou africana e meu livro não é uma ficção científica. Além disso, devemos nomear nossa realidade, nossas práticas e tudo o que somos hoje. Os outros decidiram que éramos negros, que nosso continente se chamaria África e que éramos africanos. Toda vez que queremos fazer algo, pegamos um conceito que existe no imaginário ocidental e colocamos “afro” na frente.
É por isso que você se opõe ao uso de feminismo na África no ensaio “A outra língua das mulheres”?
Nesse ensaio, mostro como experiências pré-coloniais podem nos inspirar. Como uma africana orgulhosa, desejo que tenhamos nossas próprias denominações e teorias originais. As primeiras a conquistar poder político no mundo foram as mulheres da África, que eram guerreiras e comandavam povos, enquanto as europeias se ocupavam de costurar e bordar. Em muitos lugares do continente, inclusive, a submissão feminina foi implementada pela colonização. Não sou contra o feminismo, mas precisamos ouvir as mulheres, mesmo que elas não se digam feministas. Não quero ser tratada como alguém que deva só receber lições de outras pessoas.
Você discorda de Chimamanda Ngozi Adichie quando ela defende que “sejamos todos feministas”?
Além de ser mais jovem do que eu, Chimamanda é uma mulher igbo da Nigéria. A cultura igbo tem um lado bonito, mas é falocrata e machista, isolando e excluindo as mulheres mesmo em tradições espirituais. Se Chimamanda fosse iorubá, talvez ela não dissesse que deveríamos ser todos feministas. No livro A invenção das mulheres [Bazar do Tempo], a escritora Oyèrónké Oyěwùmí afirma que nos tempos pré-coloniais, os símbolos de poder entre os iorubás tinham que ser femininos, o que significa que até mesmo um homem que personificava o poder tinha que se vestir como uma mulher. Oyèrónké e Chimamanda são ambas nigerianas, mas não têm o mesmo discurso pois não vêm da mesma tradição. Quando assisti pela primeira vez a conferência [de Chimamanda] no TEDX, senti que tudo acontecia ao contrário no lugar de onde vim nos Camarões.
Voltando a Vermelha imperatriz, que futuro é esse tratado no livro?
Esse romance dá início a uma trilogia que se passa em cem anos, pois acredito que precisamos pensar em como podemos nos reinventar. Uma África poderosa seria imperialista como foi o Ocidente? Seremos capazes de transformar a noção de poder ou ela permanecerá sempre sinônimo de dominação? Também quero refletir sobre o pan-africanismo, discutir qual estética resultaria disso e qual o lugar da diáspora na África do futuro — em especial a que resulta das deportações transatlânticas. Dizemos que a diáspora é a sexta maior região do continente, mas não se trata de algo muito concreto. Vermelha imperatriz me permite incorporar nossos sonhos e imaginar como eles podem se tornar realidade — ou não.
O que te levou a publicar Stardust?
Sempre pensei em lançar esse livro só quando não tivesse que provar mais nada [sobre sua escrita]. Achei que era um bom momento publicá-lo um pouco antes de completar cinquenta anos. Não imaginava que, não muito tempo depois, minha mãe morreria. É um texto de fim de ciclo, e seu lançamento em 2022 acabou correspondendo a isso.
Escrever na terceira pessoa foi uma forma de acolher a jovem Léonora?
No início, Stardust foi escrito na segunda pessoa, o que me fez sentir ainda mais implicada na história. Tinha a impressão de estar me expondo demais. A escolha da terceira pessoa permitiu uma distância que ajudou a chegar ao fundo dessa narrativa. Mas é claro que gostaria que as pessoas tivessem empatia pelas personagens. É o mínimo que posso fazer por elas.
Você mudou alguma coisa no texto antes de publicá-lo?
Tenho dificuldade de ler esse livro. Foi muito intenso o que vivi e o que conto nele, por isso não toquei em nada. Não posso corrigi-lo, esse estilo de escrita me abandonou há muito tempo. Até deixamos os erros. Se os corrigisse, teria distorcido o texto.
Na introdução de Stardust, você afirma não ter lançado o romance antes pois não queria ficar conhecida como “a sem-teto que escreve livros”. Como não sucumbir à pressão para seguir um estilo literário após estrear com duas obras premiadas – L’intérieur de la nuit e Contornos do dia que vem vindo?
Tinha 30 anos quando publiquei esses livros. Eu não era uma pessoa impressionável – mesmo jovem, nunca fui. Meu objetivo sempre foi ser livre e fazer o que eu quero e sinto. Se dá certo, ótimo. Se não, tanto faz. Quando meu primeiro trabalho saiu, em 2005, havia dois outros que estavam prontos, mas não tive pressa em assinar o contrato com uma editora, porque o que me interessava era a música.
Como não sucumbir à pressão para seguir um estilo literário depois de estrear com obras premiadas?
Quando publiquei os primeiros livros tinha trinta anos e não era uma pessoa impressionável — nunca fui. Meu objetivo sempre foi ser livre, faço o que quero. Se dá certo, ótimo. Se não, tanto faz. Quando meu primeiro livro saiu havia dois outros prontos. Não tive pressa em assinar o contrato, o que me interessava era a música.
Quando decide o gênero em que vai tratar determinado tema?
É o tema que escolhe a maneira como quer ser tratado. Além disso, há assuntos que atravessam todos os estilos, como o de um ensaio que escrevi sobre ser afro-europeu, que é como chamo os europeus descendentes de africanos. O que apresento de maneira teórica nesse texto aparece encarnado nas personagens da minha ficção. São obsessões que fazem com que minhas peças de teatro, por exemplo, tenham uma espécie de sororidade com meus romances.
Quais são suas obsessões?
Uma delas, a deportação transatlântica, surgiu quando eu não tinha nem dez anos. Comecei a perguntar sobre o comércio de escravizados e percebi que as pessoas fechavam a cara e não queriam falar sobre o tema. Então, se tornou uma obsessão.
‘Nós negros ainda falamos sobre branquitude porque brancos são preguiçosos. Não querem se machucar’
No começo, queria saber para onde tinham sido levadas as pessoas deportadas das regiões dos Camarões. Até hoje, não há uma resposta clara sobre isso, mas a descoberta das experiências dos afrodescendentes me acalmou. Nos territórios com os quais me deparei por meio da literatura, de ensaios, da música, descobri o que meu povo viveu e criou. No Brasil, isso é muito forte.
Você fez muitas visitas ao país?
Sim. A primeira vez que fui a Salvador, mesmo antes de o avião pousar, senti algo. Você sabe quando um lugar é predominantemente negro porque a primeira coisa que vê é a precariedade. Me interesso também por afrodescendentes que estão no Irã, Iraque e em todo o Oriente. Essa é a obsessão de uma garotinha que precisa refazer um pouco seu mundo. É como entrar em contato com a família para descobrir como ela se formou.
Estudar música afetou sua escrita?
Estudei jazz e, durante muito tempo, emprestei dele a estrutura dos meus romances. Sempre busco uma musicalidade na frase, mas não se trata de uma pesquisa técnica ou intelectual. Ao contrário, é muito sensível.
Um de seus ensaios recentes, “O oposto da branquitude”, causou bastante polêmica na França…
Os franceses não querem ser chamados de brancos nem acusados de racismo. Mas se não falarmos sobre isso, nunca vamos resolver o problema da branquitude e do racismo. Nós, negros, dissemos tudo o que sabemos sobre como é ser negro no mundo. A outra parte da conversa deve ser feita pelas pessoas que racializaram o planeta, nossas imaginações e nossos corpos. Os brancos também se racializaram, mas de forma positiva, e precisam compreender o que isso provocou. Nós negros ainda falamos sobre branquitude porque brancos são preguiçosos. Não querem se machucar. Nunca haverá igualdade se essa história for tratada apenas sob a perspectiva dos corpos que sofreram.
O que A estação das sombras e Contornos do dia que vem vindo representam em sua obra?
Contornos do dia que vem vindo faz parte de uma trilogia composta por L’intérieur de la nuit e Les aubes écarlates [sem previsão de lançamento no Brasil]. A ideia é que fosse um único romance, mas o texto que traz uma reflexão pessoal sobre a relação entre mãe e filha, tema que atravessa toda a minha literatura, tinha quase mil páginas, e o editor achou que ninguém iria ler um livro deste tamanho. Após o sucesso de L’intérieur de la nuit [de 2006], ele me convidou para um encontro num restaurante e me contou sobre uma espécie de tradição não dita do meio literário francês, que ignora o segundo trabalho de um autor, quando o primeiro é muito comentado. Escrevi Contornos do dia que vem vindo com muita poesia, fantasia, violência, acreditando que ninguém o leria. Mas tive muita sorte: esta é uma das minhas obras mais lidas (e premiadas também).
E sobre A estação das sombras?
É o romance dos meus quarenta anos. Um livro que me faltava, porque escrevi muito a respeito da memória transatlântica da África, mas, quando tratamos da deportação e da escravidão, não falamos sobre os que ficaram no continente. As pinturas que retratam esse período representam o povo deitado nos porões dos navios como gravetos amontoados. Você supõe que seja um corpo, mas não têm nem um rosto. Mas eram pessoas que tinham mãe, família e amigos que sofreram sua ausência. Somente a África pode falar o que ocorreu quando tiraram as crianças dos braços de suas mães, numa época em que ninguém imaginava que a escravidão existia. A estação das sombras fala sobre como viver e aceitar o inexplicável.
Esse livro partiu de uma pesquisa histórica?
Sim. Uma amiga cantora me entregou um estudo feito por sua mãe, sobre as comunidades que ocupavam o sul do Benin, reunindo testemunhos da escravidão no formato de canções. Historiadores não podem se basear nesse tipo de material, mas uma romancista pode se inspirar em músicas, rituais… Aqui no Togo, por exemplo, há um rito vodu feito para apaziguar os espíritos que partiram e perdoar aqueles que participaram [do tráfico de pessoas]. Não é por acaso que estou de volta à África.
Você menciona diversas teóricas brasileiras em Stardust…
Sempre quis saber o que os descendentes de deportados estão produzindo em seus respectivos países. É preciso que nos encontremos para construir algo para além do que nos foi feito e que nos prejudicou. Por isso, gostaria de publicar intelectuais brasileiros e afrobrasileiros em minha editora, a Quilombo. Toda vez que conheço a produção da diáspora, recupero um pedaço de mim.
Acredita que a literatura é capaz de apaziguar os espíritos de africanos e de sua diáspora?
Temos de produzir obras de ficção com propriedades curativas para todos nós, porque os colonizadores que criaram a maioria dos países africanos de hoje sabiam o que estavam fazendo ao misturar os povos que vendiam e os que estavam sendo vendidos. Falamos sobre a violência étnica, mas as inimizades não são étnicas. Trata-se de uma disputa histórica, nunca resolvida. No Benin, por exemplo, iorubás não gostam de fons, porque seus ancestrais eram reis poderosos que enviaram exércitos de amazonas para atacar as aldeias iorubá. Nossos governos também exploram circuitos turísticos memoriais para ganhar dinheiro da diáspora. Não conseguiremos projetar um futuro se não curarmos as feridas internas.
Matéria publicada na edição impressa #87 nov em novembro de 2024. Com o título “Sem concessões”
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