Literatura infantojuvenil,

Um beabá para pequenos meditadores

Kiusam de Oliveira insere as crianças no centro das práticas de meditação ancestrais

29mar2023 | Edição #68

Conhecida por retratar temas como racismo, direitos humanos, diversidade de gênero e representatividade para o público infantojuvenil, a professora e escritora paulista Kiusam de Oliveira retorna ao tema da cultura afro-brasileira com Pequeno manual de meditação: para crianças que querem se conectar com o mundo (Pallas). O texto é acompanhado pelas ilustrações de Rodrigo Andrade, que mostram o passo a passo e os detalhes da meditação. A parceria entre Oliveira e Andrade já tinha dado origem ao livro O black power de Akin (Editora de Cultura), sobre o qual a autora falou em entrevista anterior à Quatro Cinco Um e votado como um dos melhores livros infantojuvenis de 2020 pelos colaboradores da revista.

Em seu Pequeno manual, Kiusam traz palavras do iorubá para resgatar a meditação de origem africana e ensina as crianças a se atentarem à natureza e mergulharem em si mesmas. Em entrevista, ela fala sobre a criação dessa história, sua relação com a prática e a presença de mulheres e crianças na representação das práticas meditativas.

Por que falar sobre a meditação para crianças? Você é adepta da prática?
Sou ativista do Movimento Negro Unificado (MNU) e uma ebomi (‘meu mais velho’, ‘pessoa que já cumpriu o período de iniciação’) no Candomblé de Ketu. Desde minha adolescência, aprendi a compartilhar informações e valores preciosos em prol do povo negro e da ancestralidade africana a fim de combater o racismo e desinformação. Brasileiras e brasileiros são desinformados em relação ao continente africano, reconhecido como o berço da humanidade. No Brasil a ampla população desconhece esse fato, mas a imprensa brasileira continua a transmitir a ideia da África como um continente miserável, com falta de tudo e repleto de doenças. Além disso, a ideia de que a vida do povo negro começou com a escravidão no Brasil. Parto do princípio que, assim como há o engodo de que a filosofia nasceu na Grécia, sendo que os filósofos gregos passavam temporadas nas universidades africanas, as primeiras do mundo, aprendendo com mestres africanos para, ao retornar à Grécia, ocultarem as referências de suas poéticas filosóficas gregas, o mesmo se deu com a meditação.

Quando pesquisamos em dicionários ou no Google, encontramos referências à meditação como uma prática de origem oriental, com estratégias para esvaziar a mente. Esvaziar a mente? Será isso possível? Eu sou adepta à prática no sentido de silenciar a minha mente, não esvaziá-la, e certamente há diferença nisso. Busco uma respiração consciente, capaz de me levar a um estado de conexão comigo mesma, com o sábio Universo e com a sábia ancestralidade. Gostaria de ser mais assídua na meditação, mas pelo menos pratico cinco minutos por dia, e os benefícios são incríveis; por isso, eu gostaria que as crianças soubessem do valor da meditação.

Você teve auxílio de especialistas na prática de meditação para escrever o livro?
A consultoria veio por parte da instrutora em Kemetic Yoga, Ranadhiira Renata, que me trouxe as posturas da ioga africana. A partir daí, houve uma combinação com o ilustrador do livro, Rodrigo Andrade, para que as ilustrações revelassem verdades negrorreferenciadas. Já o texto surgiu de uma inspiração, pois foi canalizado por mim depois de uma sessão terapêutica de alinhamento dos chacras e equilíbrio energético com meu terapeuta holístico Érico Félix de Souza. Na noite depois da sessão, acordei às duas da manhã com o texto jorrando da minha mente; peguei caneta e bloco de notas para registrar as letras e a história nasceu de uma só vez. 

No livro, você fala da prática de meditação africana. O que é a Kemetic Yoga?
Os antigos egípcios eram negros. O Egito era conhecido como Kemetic [kemet é a palavra antiga para Egito, se refere às terras pretas e férteis das margens do rio Nilo], isto é, Terra de Pretos. A ioga é uma prática meditativa originária do Kemetic. As posturas da Kemetic Yoga são aquelas registradas nas pedras pelos ancestrais. Sua prática estava associada a óleos e ervas naturais, aromas, sentidos, tudo para se aproximar do sagrado que habitava em cada ser.


Ilustração de Rodrigo Andrade [Divulgação]

Por que você procurou inspirações femininas para representar a meditação?
Sociedades ocidentais exaltam o masculino, talvez por isso a ênfase dada aos homens no campo da meditação seja intensa. Há um trecho do livro onde questiono “as referências são homens, por que será?”. Para mim, uma professora-pesquisadora que se tornou escritora, é fundamental trazer questões polêmicas, como um convite ao pensamento crítico. Se eu pedir “cite três referências femininas na meditação mundial”, talvez eu fique sem respostas. O apagamento feminino só não é maior que o apagamento do continente africano, de seus povos, de suas mitologias e de seus deuses e orixás.

Por isso usou palavras do iorubá ao longo do Pequeno manual de meditação?
Uma língua africana me possibilita falar sobre a origem africana da meditação. Parto do pressuposto científico de que a África é o berço da humanidade. Sou filha de Oxum, o que só descobri recentemente, por causa da ligação dessa deusa iorubá com a meditação. Quando soube, corri para os meus mais velhos do candomblé para saber se a informação era real, e foi o professor Ruy do Carmo Póvoas, babalorixá de um terreiro dedicado a Oxum, que me trouxe a confirmação durante uma palestra que ministrei na Universidade Federal do Sul da Bahia, quando ele se levantou na plateia e cantou, em iorubá, uma cantiga de Oxum que se refere a ela como uma deusa ligada à meditação. 

Que livro-manual você gostaria de ter lido quando estava crescendo?
O meu próprio livro, O mundo no black power de Tayó (Peirópolis, 2013), e um manual que falasse sobre empoderamento e autoestima da criança negra.

Como podemos incentivar o hábito de leitura nas crianças?
Lendo para elas e na frente delas todos os dias para que percebam o valor da leitura e o poder da autonomia dada pela alfabetização, apresentando livros, gibis, jornais, revistas para que tomem gosto pela leitura num ambiente organizado para isso.

Quem escreveu esse texto

Jaqueline Silva

É estudante de Jornalismo na ECA-USP e estagiária editorial na Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #68 em março de 2023.