Literatura em língua francesa,
Entre a selvageria e a suavidade
Vencedor do Booker International Prize 2021, David Diop fala sobre as entranhas da guerra e o que ela causou sobretudo nos corpos negros
01set2021 | Edição #49Passados mais de cem anos da Grande Guerra, seus fantasmas ainda estão a assombrar o mundo, como um volumoso corpo que morre, deixa assuntos pendentes e não consegue encontrar o descanso eterno. É construindo esse corpo devorador de homens que David Diop digere, em Irmão de alma, lembranças ancestrais em sua ficção. No romance, o escritor franco-senegalês elabora uma trama que subverte a ordem da leitura e “devora” a própria escrita ao narrar a história de um jovem combatente senegalês que atravessa a Primeira Guerra Mundial defendendo os interesses da França. O livro, segundo o autor, é resultado de sua experiência pessoal, que mistura duas sensibilidades culturais.
Nascido em Paris e criado em Dacar, no Senegal, Diop é hoje professor na Universidade de Pau e Pays de l’Adour (localizada próxima aos Pireneus, no interior da França) e dedica-se a estudar a literatura francesa do século 18 e representações que europeus construíram da África nos séculos 17 e 18. Pelas óbvias correlações biográficas, e até mesmo geográficas, fica claro que vida — e pesquisa acadêmica — se misturam à sua obra, mas não o suficiente para transformar sua ficção em biografia.
Em 2021, Diop venceu o International Booker Prize, um evento que potencializa a ficção: o livro que retrata os abusos da França na guerra, escrito por um autor negro, é o primeiro romance francês a receber a honraria. É fácil cair no estereótipo que essa provocação traz, fazendo da obra um “acerto de contas com a História”, mas Diop se desfaz da superfície e afirma que não seria possível ter escrito a história de dois amigos que se perdem nas batalhas se não amasse os dois países, apoiado em sua memória afetiva, mas também em seus estudos.
Irmão de alma é o segundo livro de David Diop, que não esperava tanto “barulho”. O livro também venceu, em 2018, o Choix Goncourt du Brésil, braço do prestigioso prêmio literário francês. A publicação em português pela editora Nós — em tradução meticulosa de Raquel Camargo, com apoio da Embaixada da França no Brasil — é uma boa oportunidade para o leitor brasileiro acessar de forma próxima os registros, ainda que ficcionais, desse triste episódio da história, em que potências europeias fizeram valer controles territoriais sobre povos negros africanos para colocá-los em batalha — valendo-se até mesmo do estereótipo do selvagem no front contra os homens brancos assustados, não obstante a exposição de seus corpos.
Segundo adianta a editora Simone Paulino à Quatro Cinco Um, a Nós publicará, no início da primavera do ano que vem, um segundo livro de Diop, que acaba de ser lançado na França sob o título de La Porte du voyage sans retour (A porta da jornada sem retorno). Paulino conta ainda que Irmão de alma está às voltas com uma adaptação para o cinema francês. “A França é um dos países que mais incentivam o livro, que buscam espalhar as obras francófonas pelo mundo. O livro é uma política de Estado muito bem estruturada por lá”, elogia a editora.
Arrebatando crítica e público, o livro foi citado ainda no topo da lista de indicações de “leitura de verão” do ex-presidente norte-americano Barack Obama — feito que emocionou o autor.
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Por meio da história de um personagem, o livro narra a história de um povo e de seu país, o Senegal, trazendo à superfície as profundezas e entranhas da guerra, descritas misturando memória e pesquisa, de forma que o leitor se aproxime do front, do irmão caído, sangrando e agonizando. Tudo isso sem, em nenhuma medida, apelar ao sensacionalismo da palavra que explicita a ação.
Com estranha suavidade, Diop fala de morte, crueldade e órgãos despojados na terra, resultado de uma batalha que dizimou corpos negros a serviço de impérios. Apresenta ao leitor uma realidade de muitas camadas — duras, necessárias, reais. Mergulha na aspereza da realidade de um país e de seu povo sem deixar de lado a alma, a vida pregressa, a verdade que cada um carrega.
Há no romance uma certa tônica dos opostos, com a exploração de conceitos antagônicos de extremidades literais: “o lado de dentro e o lado de fora”; “o inimigo do lado de lá e os amigos do lado de cá”; a lucidez e a loucura, justapostas em um mesmo corpo. À medida que Alfa Ndiaye, o personagem principal, mergulha nas batalhas da Grande Guerra e faz sangrar sobre seu corpo sangue inimigo e medo amigo, tornando-se ele próprio um signo de memórias, sincretismo e multicultura senegalesa, Diop tensiona a narrativa ao máximo que ela pode se estender até se romper — sem deixar, no entanto, que ela se rompa. Testa personagem e leitor ao conduzir o enredo para um ponto central: a proximidade com o que ali ocorre — por mais violento e perturbador que seja — é real, porque aquilo aconteceu.
A entrevista a seguir foi concedida pelo autor durante seu retiro de descanso junto à família. David Diop fala sobre seu processo de pesquisa para o livro e conta que não acredita que a literatura seja capaz de mudar o mundo. Ao falar da guerra como um de seus personagens, o autor nos apresenta a uma violência bruta e explícita, que ele retrata com singularidade. Desse horror que atravessa sua escrita, nós somos todos voyeurs, afirma Diop, enquanto diz não acreditar no progresso moral da humanidade.
Seu romance viaja até as entranhas de um corpo violento de duas faces: a guerra em si e a submissão do povo senegalês ao império francês. O que o motivou a tentar dar forma, na escrita, a um corpo tão mutilado quanto o corpo da guerra?
A Primeira Guerra Mundial é uma espécie de “fábrica de guerras”, nas palavras do escritor Blaise Cendrars. Uma guerra em que uma chuva de granadas mutila os corpos de todos os soldados. Os estilhaços das bombas cortam mãos e pernas e estripam, como faz meu personagem principal, mas em escala industrial. Meu objetivo era mostrar que selvagem é a guerra, não os soldados que nela lutam.
Você brinca no livro com os sentidos de oposição, como “o lado de dentro e o lado de fora” de um corpo, da guerra. A guerra acaba por se tornar eternamente o lado de dentro de quem passa por ela?
Sim. Os soldados que voltam da guerra, se sobrevivem ao horror, estão geralmente traumatizados pelo que viveram. Se o exterior parece intacto, o interior está de cabeça para baixo, e a guerra segue seu curso nos espíritos atormentados.
Nas primeiras páginas, você nos apresenta à guerra, às trincheiras, à morte, às entranhas de um corpo, mas com uma sutileza tal que não nos assusta, mas nos aproxima de todo aquele horror. Você conseguiu chegar à alma da guerra pela pele dos senegaleses. Como foi esse processo de pesquisa? Como essa violência o atingia enquanto formava o romance?
Pesquisei a guerra de uma forma peculiar para um acadêmico como eu. Li livros de história muito específicos sobre o papel desempenhado pelos fuzileiros senegaleses na guerra, sem fazer anotações de nenhuma espécie, de modo que, quando estava escrevendo meu romance, foi minha memória afetiva que funcionou. Por isso também é que não menciono nenhum local de batalha ou alguma data específica. Queria descrever uma espécie de mãe de todas as batalhas, em que o essencial seria a representação da intimidade de meu personagem com a guerra. Enquanto escrevia, tentei me distanciar de seu sofrimento.
Muitas palavras, expressões repetidas, remetem a corpos, uniformes ou disformes, destruídos ou inteiros — a ideia de corpo está sempre presente. Você encontrou o corpo que buscava construir?
Sim. A Primeira Guerra Mundial foi um enorme sacrifício: o dos corpos de uma grande parte da juventude.
Você faz analogias com a antropofagia em pontos importantes da narrativa. O próprio texto, no entanto, é de certo modo autofágico. Uma página devora imediatamente a outra, o texto se deglute ao longo da leitura, assim como a guerra e o próprio narrador. Como foi encontrar esse texto dentro de si?
Tenho a impressão de que não fiz senão transcrever a voz de Alfa Ndiaye. É uma voz que nos surpreende com sua invasão e que surgiu do interior do personagem. Alfa Ndiaye não se preocupa conosco, ele não se importa. Ele está preso na tormenta de sua dor. Nós somos os voyeurs.
Como escrever sobre o estereótipo do corpo negro selvagem e sua exploração pela França na guerra sem fazer dele tabu?Adorei, em meu romance, brincar com os estereótipos em torno da selvageria obscura e de frustrá-los ao mesmo tempo. Durante a Primeira Guerra Mundial, a França dispôs de soldados de seu império colonial para apoiar o esforço de guerra. Essa guerra foi uma grande devoradora de homens e, ao mesmo tempo, uma guerra de propaganda, da qual os africanos foram as vítimas.
A Primeira Guerra foi uma grande devoradora de homens e, ao mesmo tempo, uma guerra de propaganda, da qual os africanos foram as vítimas
Sendo franco-senegalês, escrever esse livro foi também uma forma de explicar a si mesmo fantasmas do passado e temores do presente?
Meu romance é o resultado de minha história. Tenho duas sensibilidades culturais que mesclo em meu livro. Acho que eu não poderia ter escrito esse livro, que foi bem recebido na França e no Senegal, se não amasse esses dois países.
O livro tensiona e denuncia sem de fato fazê-lo. Tudo é narrado de um ponto de vista que nos coloca dentro da história. Os resultados do período colonial, da escravidão e da Grande Guerra ainda ressoam no presente, justamente quando se começa a tensionar também na Europa as relações com imigrantes e descendentes das colônias. Qual a participação da literatura no enfrentamento dessas questões?
Não acho que a literatura ganhe alguma coisa se engajando em cruzadas políticas de forma explícita. A literatura, em minha opinião, permite sugerir a complexidade de vieses, destinos individuais, e mostrar que a vida não é nem totalmente obscura nem inteiramente clara, mas cinzenta. Para mim, a literatura movimenta e a história explica.
Existe algum tipo de reparação em sua literatura?
Em geral, a história é escrita pelos vencedores. Eu quis mostrar que os fuzileiros senegaleses vieram lutar na França com sua cultura, com sua própria representação do mundo, do bem, do mal. Trata-se menos de reparação que de informação.
Você acredita na literatura como um passo para moldar a realidade?
Acho que a literatura não pode mudar o mundo tal como ele se move, mas talvez possa mudar o ponto de vista de certas mulheres e homens sobre o mundo.
Seu livro foi citado em primeiro lugar na lista de leitura de verão de Barack Obama. Esse romance encontra um mundo hoje cheio de ódio, de preconceitos e dores, mas também de esperança. Você esperava tão grande repercussão e, com ela, passar alguma mensagem ao mundo?
Eu não tinha uma mensagem em particular. Queria apenas ser sincero e na verdade não esperava tamanho sucesso. Meu livro pertence aos leitores. Estou emocionado com o fato de que Barack Obama gostou tanto do livro. Não tenho mensagem para transmitir. Coloco meus personagens em um contexto difícil, que já existia. São os leitores que constroem as mensagens, em função da atualidade de sua leitura.
O personagem Alfa percorreu o caminho de herói a feiticeiro e, quando conta a história, não abandona Deus: “Deus está sempre atrasado em relação a nós. Ele só pode constatar os estragos”. Essa é uma conclusão de Alfa ou uma cobrança de David Diop a Deus?
A expressão da verdade de Deus repetida por Alfa Ndiaye é uma fórmula desprovida de qualquer dimensão religiosa. Sua repetição testemunha sua perturbação mental, suas emoções contraditórias. É um elo com seu passado anterior à guerra, quando era puramente um instrumento de vínculo social.
E você, no que acredita?
Acho que todos os homens, de ontem, hoje e amanhã, são eternamente os mesmos, feitos de sombra e luz. Não acredito no progresso moral da humanidade.
Todos os olhos do mundo da literatura estão voltados para você. O que vem a seguir?
Meu novo romance acaba de ser lançado na França. Seu título é La Porte du voyage sans retour (A porta da jornada sem retorno) e conta a jornada secreta de um jovem botânico francês de 23 anos que esteve no Senegal de 1749 a 1754. É um romance de aventura e amor, em que o personagem principal, Michel Adanson, se vê dividido entre os grandes ideais da filosofia iluminista e a dura realidade da escravidão transatlântica.
Este texto foi realizado com o apoio da Embaixada da França no Brasil.
Matéria publicada na edição impressa #49 em julho de 2021.
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