Literatura,

Contra a rigidez

Expoente da literatura libanesa, Rachid Al-Daif fala de seu livro que foi proibido em diversos países árabes e chega agora ao Brasil

21out2021 | Edição #51

E quem é Meryl Streep? é um desses livros que fazem a gente querer tomar banho depois de ler. Incomoda. O desconforto, porém, é prova do talento de Rachid Al-Daif, um dos grandes nomes da literatura contemporânea libanesa, ao lado de Hoda Barakat e Elias Khoury. Ele conta a história de um homem ciumento que desconfia da mulher. É um suco de patriarcado e de machismo. Entre outras coisas, o protagonista culpa a televisão por satélite por trazer ao Líbano comportamentos ditos ocidentais. Ele acredita que atrizes americanas — como Meryl Streep, no filme Kramer vs. Kramer (1979) — desvirtuaram a mulher libanesa.

A história é narrada pelo protagonista, um anti-herói, e o leitor tem acesso aos seus pensamentos mais absurdos. O romance lembra, nesse sentido, Memórias póstumas de Brás Cubas. Uma versão levantina, com um vocabulário sexual pesado — bem vertido para o português por Felipe Benjamin Francisco, que dedicou seu mestrado na Universidade de São Paulo ao romance de Al-Daif, lançado originalmente em 2001 e que sai agora pela editora Tabla.

Seria justo dizer que o protagonista de E quem é Meryl Streep? é um tipo de anti-herói?
Você está absolutamente certo. Eu era comunista quando, em 1975, estourou a guerra [civil libanesa]. Eu achava que o marxismo era a ciência que nos permitiria compreender o mundo e transformá-lo. Só que rapidamente percebi que essa ciência não era de nenhuma ajuda para entendermos o que estava acontecendo. Nada, além de palavras. Percebi que a única saída para mim era a literatura, pois só a literatura conseguia expressar a loucura que não pode ser entendida por meio de conceitos. Como é que, depois de passar pela provação da guerra, eu poderia construir um herói positivo?

Você dá o seu próprio nome para o protagonista, como fez em outros dos seus romances. Por quê?
O “eu” é, para mim, um instrumento de trabalho. Esse instrumento me permite me colocar na pele de um personagem que eu não gosto de ser para adotar sua lógica e ver com seus olhos. Isso me permite escrever um romance fazendo com que pareça ser minha história mais pessoal e íntima. O leitor combina, assim, dois prazeres: o de ler um romance e o de olhar pelo buraco da fechadura o que acontece numa sala atrás de uma porta fechada. Como tantos outros, acho que o romance como gênero também se baseia nessa curiosidade: o voyeurismo. Gosto de escrever na primeira pessoa e me sinto muito confortável, pois me permite desfrutar de uma liberdade quase total. E, para dar mais credibilidade ao narrador em primeira pessoa, às vezes uso o meu nome.

Você transita entre o árabe padrão e o dialetal de maneira frequente no seu romance.
O dialeto — ou o árabe falado — é o meio de comunicação cotidiano. Ele contém o cheiro da cidade. Nós nascemos no dialeto, comemos no dialeto, brigamos no dialeto, compramos e vendemos no dialeto. Amamos no dialeto. O árabe literário que eu utilizo e que adoto não consegue captar tão bem quanto o árabe falado o dinamismo dos detalhes da experiência vivida.

O título desse livro — Tistifil Meryl Streep — é um bom exemplo disso. Tistifil é uma palavra difícil de traduzir. O que você quis dizer, exatamente, com esse termo?
A palavra tistifil — que quer dizer “ela é livre para escolher” — é usada na língua libanesa-palestina-síria. Encontramos vestígios dela no famoso dicionário enciclopédico clássico árabe Lisan al-arab (Língua árabe), do final do século 13. O protagonista do romance admira a atriz norte-americana Meryl Streep a ponto de “conhecê-la” nos seus devaneios, mas ele não quer que sua mulher se comporte como ela. Isso resume, penso eu, a atitude em relação ao Ocidente de muitos intelectuais da região, baseada nessa oposição entre fascinação e repulsa. Nós somos fascinados pelo Ocidente, mas, ao mesmo tempo, queremos manter nossa “identidade” e nossas tradições.

Você acha que é possível uma tradução capturar todas essas nuances?
A melhor maneira de ler um livro é fazê-lo em seu idioma e na sua cultura. Cada idioma é uma forma diferente de ver e conceber o mundo. Os inconvenientes da tradução são a perda necessária de muitas referências e conotações culturais e históricas. É a perda do que se refere à experiência única de um povo. É por isso que a tradução de um romance é essencialmente a tradução da história que o romance conta, e raramente — e com dificuldade — é a tradução do estilo. No entanto, o estilo é uma parte essencial do trabalho de um escritor. Às vezes eu considero meu estilo um de meus personagens. Infelizmente, não há nada que possamos fazer.

Algo que também aparece no romance é a presença do francês e do inglês no Líbano.
Hoje o francês é muito popular, mas o inglês está dando passos gigantescos. Quem não fala inglês se sente excluído. O protagonista sofre dessa carência, principalmente porque sua esposa é mais culta do que ele. Existe uma área em que ela está livre de sua influência e censura.

Seu livro tem muitas descrições de sexo, que não são comuns em outros livros em árabe.
Foi intencional. Não com o propósito de provocar, embora eu não me importe em provocar! A descrição detalhada tem uma função fundamental. Sem ela, muitos fatos e situações perdem seu papel e seu efeito. São esses detalhes que despertam o ciúme do marido. Foi a descrição desses pequenos detalhes na conduta da esposa que fez o marido descobrir que ela estava tendo uma experiência sexual. É por isso que ele temia o passado da esposa e seu conhecimento no campo. O livro foi proibido em muitos países árabes. Mas é um livro que muito satisfez a editora e os livreiros. Uma anedota: uma professora de literatura inglesa em uma universidade em Beirute me disse que ela tinha lido e escondido para que sua mãe não lesse! Outra anedota: a mulher de um amigo me contou que o marido dela leu e escondeu — ela encontrou, leu e devolveu ao seu lugar!

Sua linguagem é bastante explícita. Outros escritores árabes lançam mão de eufemismos para falar de sexo, mas você usa palavras do dialeto. Pode falar sobre isso?
O vocabulário do dialeto é muito mais adequado para essa situação e esses personagens. Ele está carregado de experiências vividas. Nós fazemos amor em dialeto! Impróprio, o árabe literário na cama provocaria risos. Às vezes me chamam de escritor provocador. Minha escrita é, sem dúvida, provocativa para aqueles cuja imaginação nunca floresceu e que reduzem a vida a uma rigidez mortal. Um pouco de “sujeira” faz bem àqueles que têm a mente “pura”.

Quem escreveu esse texto

Diogo Bercito

É jornalista e autor de Vou sumir quando a vela se apagar (Intrínseca).

Matéria publicada na edição impressa #51 em setembro de 2021.