Literatura infantojuvenil,

Crescer rápido demais

Após um ano da catástrofe socioambiental em São Sebastião, Claudio Fragata e Janaína de Figueiredo contam sobre o acidente em livro infantojuvenil narrado pela voz de uma criança

27fev2024

No dia 19 de fevereiro de 2023, mais uma tragédia socioambiental destruiu a paisagem e a moradia de milhares de brasileiros. Um deles foi Sebastião, personagem-título da obra infantojuvenil escrita por Claudio Fragata e Janaína de Figueiredo e lançada pela Aletria Editora exatamente um ano após os deslizamentos de encostas causados por fortes chuvas em São Sebastião, litoral norte de São Paulo, que soterraram casas e obrigaram sobreviventes a se mudar para abrigos improvisados.


Sebastião narra o que comunidades menos assistidas por políticas públicas enfrentam após catástrofes ambientais

Mas um abrigo, improvisado em salas de aulas de escolas, é uma casa? Essa é uma das perguntas que os autores e o protagonista da história se fazem incessantemente ao longo do livro. Muitas vezes, o silêncio é a única resposta que nós e o menino recebemos em troca; em outros momentos, o avô, um sábio caiçara, tenta explicar sobre as mudanças que podem ter motivado todos esses traumas; e, de vez em quando, percebemos o olhar de afago do cãozinho Biró, que transmite uma sabedoria quase silenciosa — e que os salvou na noite do acidente. “Os bichos pressentem catástrofes”, diz o avô em determinado momento.

Pela ótica de uma criança que teve de amadurecer rápido demais, Sebastião narra, junto às ilustrações de Rodrigo Mafra, a ideia de construção e desconstrução constantes que comunidades menos assistidas por políticas públicas enfrentam. Em entrevista para a Quatro Cinco Um, os autores Claudio Fragata e Janaína de Figueiredo falam sobre a sabedoria do povo caiçara, o amadurecimento precoce das crianças perante tragédias e a importância de uma memória coletiva para elaboração dos traumas.

    
Os escritores Janaína de Figueiredo e Claudio Fragata [Acervo pessoal]

Sebastião é contado pela voz de uma criança, e une também as histórias de um avô e a sabedoria dos animais. Por que contar essa história sob a ótica desses personagens?
Janaína de Figueiredo:
Trazer esses personagens para contar essa história é uma provocação epistemológica. A figura do avô, por exemplo, traz o universo oral das comunidades tradicionais caiçaras. A sabedoria presente nesse universo desconstrói racionalidades hegemônicas, pautadas na hierarquização de saberes e em ações que destroem o planeta. A crise climática é parte constitutiva desse tipo de racionalidade. 
Claudio Fragata: A tragédia tem raízes profundas. Começa com a ocupação imobiliária de uma área que antes pertencia aos caiçaras e que o avô do personagem principal viu acontecer. E cachorros são sempre bem-vindos nas narrativas — só lembrar da icônica Baleia de Graciliano Ramos — e costumam ficar sem donos nesses acidentesas. Por sorte, não foi o que aconteceu com Biró.

O que vocês se lembram do dia 19 de fevereiro de 2023? Como o desastre os trouxe até a elaboração do livro?
CF:
Janaína e eu estávamos envolvidos num projeto sobre piratas quando o desastre aconteceu. Ficamos impactados pelo assunto. Eu não conseguia pensar em outra coisa. E no fato de sempre os mais pobres serem as vítimas.
JF: Sou caiçara. No dia 19 de fevereiro, meus filhos foram brincar de Carnaval na praia de Maresias, na costa sul (a 30 km do centro). Quando eu e meu companheiro acordamos, fomos ao quarto deles e não os vimos. Ficamos desesperados, tentamos contato pelo telefone, sem sucesso. Procuramos notícias e soubemos sobre a forte chuva da noite anterior. Foi uma angústia muito grande, pois não sabíamos o que havia acontecido. Até que chegaram as primeiras notícias dos deslizamentos. Foi um dos momentos mais difíceis da minha vida. Nós não sabíamos se nossos filhos estavam vivos. Não havia comunicação nenhuma. As estradas estavam cobertas de lama, o mar agitado e não tinha sinal para ligações telefônicas. Meus filhos conseguiram fazer um contato depois de 12 horas e foi muita emoção. Saber que estavam vivos, apesar de tudo. Muitas vidas foram interrompidas naquela tragédia e a dor se alojou em todos nós.

Quais são os impactos de escrever sobre um desastre socioambiental para o público infantojuvenil? 
CF: 
Acho que é um engano entender que a literatura infantil só deve falar de flores e passarinhos. As crianças sabem lidar com todas as emoções. Eu costumo comparar um livro “tatibitate” com uma Barbie sem genitais. É muita hipocrisia, além de um contrassenso biológico.
JF: Como estava envolvida nas ações dos abrigos, criados nas escolas após o desastre, tive muito contato com as crianças, as vítimas da catástrofe. Nos relatos percebi, junto com Cláudio, a importância de contar sobre essa cena traumática a partir da perspectiva das crianças. O que as crianças sentiram sobre essa tragédia? Como imaginam o mundo? Penso que a crise climática, o aumento das desigualdades sociais, econômicas, raciais fazem parte do mundo contemporâneo. Cada vez mais vivemos fraturas que transbordam e têm impacto na infância. Sebastião revela infâncias atravessadas por desigualdades sociais e outros marcadores de poder. O livro quebra a ideia de uma única infância. Muitas crianças vivem tragédias reais e a empatia pode ser uma estratégia de criar um projeto de transformação.

Amadurecer antes do tempo é uma violência. Lutar por infâncias felizes e plenas é lutar por um mundo melhor e justo

Como a sabedoria dos povos originários pode ajudar as crianças a entenderem a união da natureza e do homem vivendo em harmonia?
JF: A forma como os povos originários pensam a vida cria uma perspectiva contra-hegemônica, necessária para pensarmos o mundo de outro jeito. Ainda é muito pequena a representação das comunidades caiçaras na literatura infantojuvenil. As comunidades caiçaras são como camponeses do litoral que viveram (e vivem) processos de expropriação compulsória. A transformação dessas comunidades em comunidades de pescadores é um fato relativamente recente. A perda da terra trouxe o mar como espaço econômico, cultural e afetivo. Mas isso também tem se transformado. No litoral norte de São Paulo, a chegada dos “empresários da pesca” transformou a vida desses pescadores tradicionais: eles perderam suas terras e seu modo de vida foi comprometido. Sebastião é uma tentativa de trazer essas comunidades para a literatura, na contramão do processo de apagamento de suas memórias. Com o livro, penso que as crianças podem conhecer essa parte da nossa história.

Sebastião também fala um pouco sobre a perda da infância de maneira compulsória, a ideia de ter que crescer rápido demais por conta de um trauma. Como vocês encaram esse tipo de amadurecimento?
CF:
Esse crescimento rápido demais é um amadurecimento forçado, fruto do trauma, sofrimento e do desamparo social.
JF: O trecho, “Será que depois de tudo o que me aconteceu, ainda sou uma criança?” dialoga com Primo Levi, em É isto um homem? e o discurso icônico de Sojourner Truth ("E não sou uma mulher?"). Na verdade, a ideia foi pensar as múltiplas formas de ser criança e os diversos e diferentes marcadores que atravessam as infâncias. Amadurecer antes do tempo é uma violência. Lutar por infâncias felizes e plenas é lutar por um mundo melhor e justo.

Quais livros vocês gostariam de ter lido na infância? 
JF:
Quando criança, entrei no universo da literatura pelas mãos do meu avô, José de Figueiredo e de meu pai, Ataualpa de Figueiredo Neto. Foi pelas vozes desses narradores que, pouco a pouco, fui me encontrando com o livro. Meu avô contava histórias de tradição oral e meu pai narrava sonhos. Já o mundo da escrita foi apresentado pela minha querida professora, Vaninha. Na minha infância, em São Sebastião, não havia muitas possibilidades de acesso ao livro. Havia um livreiro, que vendia de porta em porta, mas minha família não tinha condições de comprar. O livro que gostaria de ter lido era, na verdade, uma coleção de contos de fada que existia na época.
CF: Acho que li todos os livros que quis. Cresci rodeado deles. Meus pais eram grandes leitores e havia uma biblioteca em todas as casas que moramos.

Como podemos incentivar o hábito de leitura nas crianças?
CF: Precisamos de pais e professores leitores para que a mediação seja bem sucedida. Não adianta querer enfiar os livros goela abaixo das crianças. Leitura é alegria e vontade.
JF: Todos nós criamos uma memória leitora e que pode envolver afetos. Acho que os adultos deveriam se comprometer em ler para os pequenos. Costumo dizer que ler para uma criança é um ato de amor e generosidade. É um ato político.

Ilustração em (des)construção

Inicialmente, os personagens seriam metade peixe e metade humano, seres do mar e da terra. Algumas ilustrações aludem à engenharia social dentro do sistema econômico, com pessoas como peças montáveis, cambiáveis; ou a "produção em série" de pessoas para funções determinadas. Outras parecem restos de peças do que já tinha sido a realidade um dia, são fragmentos da realidade.

Aqui, no centro da rede, há a representação da memória e tradição. A lembrança do que as pessoas acometidas pela tragédia foram um dia, sua necessidade da reconstrução, o tempo perdido, a desconstrução da nossa identidade e o apagamento da realidade. Tudo isso é como o "desmoronamento" da pessoa, nessa história que é sobre construção e desconstrução, arquitetura antissocial e falta de planejamento urbano.

O elemento da concha remete ao resgate daquilo que o personagem foi, e tem sua individualidade respeitada, como penduricalhos de memórias. Na representação da pesca, a ligação com a própria essência, o arremesso da rede sem o mar. "As coisas não estão no espaço, leitor, as coisas estão é no tempo”, disse Cyro dos Anjos.

Rodrigo Mafra

Nascido em Lins, interior de São Paulo, Rodrigo Mafra é ilustrador e animador desde 1995. Estudou na Universidade de Brasília e já participou de exposições no Brasil e no exterior, sendo selecionado para concursos de ilustração nos EUA, México e Europa. Atualmente morando em São Paulo, se dedica à ilustração de livros infantojuvenis, animação stopmotion e composição de trilhas sonoras. 

Quem escreveu esse texto

Jaqueline Silva

É estudante de Jornalismo na ECA-USP e estagiária editorial na Quatro Cinco Um.