Literatura brasileira,

Rumo ao mar aberto

Romance faz a arte coincidir com a vida e com a morte em um cenário de deslizamentos e inundação no litoral

22mar2023 | Edição #68

Inundações, deslizamentos, muito desespero e quase cem mortos. Fevereiro de 2023 ficou marcado pela tragédia ocorrida no litoral Norte de São Paulo. No romance A segunda morte, de Roberto Taddei, um grupo de moradores dessa mesma região enfrenta uma situação semelhante. A pré-venda do livro coincidiu com as notícias sobre as consequências devastadoras da chuva na região.

Coincidências entre a vida e a arte acontecem, mas requerem a sensibilidade do autor. Taddei é professor, tradutor, poeta, jornalista e coordenador do curso de Formação de escritores do Instituto Vera Cruz. Em seu terceiro romance, o autor consegue captar o que se passa hoje-aqui-agora e o que começa a despontar. A natureza — a mata atlântica, sua vegetação e seu relevo, as trilhas, o mar e a ilha — é descrita com tanta vivacidade quanto as transformações no modo de vida e de encarar a própria morte neste início de século.

O Brasil passa por transformações significativas no seu perfil demográfico. O número de pessoas com mais de sessenta anos tem crescido, assim como a expetativa de vida. Segundo o IBGE, em vinte anos a população brasileira poderá ser considerada envelhecida. Os personagens de A segunda morte antecipam um Brasil que envelhece e que terá que aprender a lidar de outra forma com isso.

Em busca de nada

É pelas margens que o protagonista do livro transita. Com quase oitenta anos, Gustavo não é lento nem doente, não tem a pretensa sabedoria dos velhos que ensinam a viver nem é um avô cordato sempre disposto a ajudar. Longe dos estereótipos associados à velhice, Gustavo é um velho em constante movimento. Desiludido, mas ainda assim com coragem de desapegar de padrões de comportamento e reinventar a própria velhice.

Em fuga, o velho Gustavo dirige seu carro e desce a serra como uma “predição paciente de possibilidades de um futuro”. O narrador em terceira pessoa conhece o valor da contenção, sabe o que esconder: jamais pega na mão do leitor e, sobretudo, observa todos os deslocamentos e detalhes para descrever com precisão a paisagem e a movimentação dos personagens. Gustavo desce montanhas, percorre trilhas, dorme na areia e guarda para si segredos que nem o narrador ousa contar.

Sem destino, ele está indo para algum lugar simplesmente porque precisa de um ponto de chegada. Sentindo-se “solto como um coágulo”, seu único propósito é deixar tudo para trás — impossível continuar onde sempre esteve. Fuga sem bagagem e sem planejamento. Em que momento alguém perceberá sua ausência? Tinha três filhos que não via há anos e a lembrança de um pai no fim da vida.

Depois de algumas horas dirigindo, estacionar numa pousada não foi intencional, embora se lembrasse de já ter passado pelo lugar duas vezes. Ainda criança, com os pais, e depois com a irmã, no ano em que se formou, a irmã perdeu parte da memória e os pais se separaram. Mas parar ali foi mero acaso, poderia ter seguido até encontrar uma praia de pescadores onde pudesse desaparecer ou onde o caminho se estreitasse tanto que o impedisse de continuar.

Todos nós temos, em algum momento, motivo para querer deixar tudo para trás

O que ele quer mesmo é ser atravessado pelo “êxtase do amor”, como algo que simplesmente acontece — ou não. Poderia se livrar de tudo, especialmente dos ressentimentos, dizer sim à vida para apenas ser. Caminha pelas trilhas, nada no mar e começa a se sentir melhor.

A convivência com turistas e funcionários da pousada, com os pescadores e, especialmente, com Bianca o sensibiliza. Um homem velho e desencantado ainda é capaz de se apaixonar? Ele começa a perceber um tipo de felicidade, estranho até então, no modo como Bianca se coloca no mundo. As mulheres parecem empunhar mais alto o fogo da vida. Gustavo passa a ajudar nos cuidados com Heitor, marido de Bianca, que depende de um respirador mecânico.

Sentindo no próprio corpo a efemeridade de Heitor, Gustavo também parece estar perto de aceitar finalmente seu destino. Sem questionamentos nem ambições de qualquer espécie, talvez pudesse se aproximar da felicidade possível aos homens. Mas o vilarejo sofre um blackout depois de uma tempestade e, com os deslizamentos e as inundações, os moradores ficam ilhados. É aqui que a tragédia da ficção se encontra com o recente desastre climático e suas consequências na vida real.

Seguir em frente

Aceitar a vida é seguir em frente, mesmo que ela não faça sentido, e é também aceitar a morte, não apenas querer morrer. Conclusões desse tipo poderiam conduzir o velho Gustavo para um final redentor. Mas seria um final fácil e feliz demais para um autor maduro como Taddei.

Todos nós temos, em algum momento, motivo para querer deixar tudo para trás. Com quase oitenta anos era de se esperar, ao menos no desfecho, um acerto de contas, um balanço de perdas e ganhos. Mas terminamos a leitura sem sequer saber do que o protagonista fugia — o importante ponto cego do romance.

Se todos passam por isso, fugas desse tipo prescindem de justificativas. No caso de Gustavo, é justamente a fuga que coloca a vida em movimento. Mais do que isso, o movimento é a única saída para ele. E é o personagem em movimento, e não as justificativas, que conduz ao desfecho, talvez porque a vida seja feita de deslocamentos possíveis.

Um protagonista idoso e inquieto num cenário que se transforma a ponto de interferir no enredo resultou numa escrita ágil e diligente, capaz de prender a atenção do início ao fim e colocar em discussão a representação da velhice e as catástrofes advindas da mudança climática.

Quem escreveu esse texto

Ana Cristina Braga Martes

Socióloga e escritora, é autora de A origem da água (Confraria do Vento)

Matéria publicada na edição impressa #68 em março de 2023.