As pegadas de uma mãe

Entrevista, Rebentos,

As pegadas de uma mãe

A dupIa Isabel Malzoni e Laura Gorski e as mães que partem e voltam, sempre

12ago2024
Ilustrações de Laura Gorski

Quem são as mães quando os olhos dos filhos não as alcançam? No que pensam quando a fome de seus rebentos está saciada? E por que quando partem por períodos maiores, seus guris se afligem, mesmo sabendo que elas vão voltar? Há mães que passam a maior parte do tempo com seus filhos, há outras mães que, por escolha ou necessidade, ficam horas ou dias longe. Há ainda muitas, talvez excessivas, opiniões sobre a presença ou ausência das mães na vida das crianças. 

Na encruzilhada entre essas reflexões está Minha mãe caminha (Editora Caixote), de Isabel Malzoni e Laura Gorski. A partir da narrativa de um filho, o leitor desvenda as andanças de uma mãe que parte inúmeras vezes — e sempre volta, cada vez de um jeito diferente. Em meio a dúvidas e ao sentimento de falta causados por cada partida, nasce também o orgulho de um filho que percebe a empreitada da própria mãe, que caminha para se conhecer e conhecer o mundo ao redor. Em imagens formadas por folhas, flores e terra do sertão mineiro percorrido por Malzoni e coletadas por Gorski, nascem reflexões sobre a beleza dos reencontros e sobre as coisas que todos deixam e trazem em cada caminho.

LauraGorski e Isabel Malzoni (Divulgação)

Nesta entrevista para a revista dos livros, as autoras conversam sobre maternidade, as conexões entre mães e filhos, a experiência da ausência e mães que traçam os próprios caminhos.

De onde surgiu a ideia do livro Minha mãe caminha?
Laura Gorski: A ideia do livro surgiu de um convite da Isabel para mim, depois de uma visita que ela fez à minha exposição “Habitar os ciclos, desenhar os dias”, em agosto de 2023, na Galeria Arte Formatto. A exposição tinha uma série de trabalhos denominados “Flora” — o nome da minha filha —, com corpos femininos gestantes, feitos com tinta de terra e dos quais brotavam ou se sobrepunham flores e folhas desidratadas. 

Estes trabalhos eu fiz após o nascimento da Flora. Ao longo de seus primeiros meses de vida, como eu não tinha tempo de ir ao ateliê e estava dedicada aos cuidados com ela e com a maternidade, durante os passeios de carrinho (as caminhadas daquele momento) eu ia colecionando folhas e flores da estação caídas no caminho, com a intenção de fazer esta série de trabalhos posteriormente. A Bel me mandou uma mensagem após a exposição dizendo que tinha visto um livro ali na série “Flora” e me convidou para uma conversa. Nos encontramos e a conclusão foi: vamos fazer um livro juntas! 

Eu acho o livro o melhor destino para os trabalhos de arte, pelo formato, pela circulação, por caber nas mãos das pessoas e poder ser levado junto. Um mês depois, a Bel me mandou o texto pronto, que me emocionou muito e me trouxe identificação de imediato, e uma mensagem dizendo que tinha trazido dois punhados de terra de uma caminhada pelo sertão mineiro, como um presente de caminhante. 

Isabel Malzoni: Quando vi a série “Flora”, da Laura, fiquei muito tocada e pensei que havia ali um livro, talvez por ser uma sequência de dezoito imagens com uma personagem. Quando sentamos para conversar, ela me perguntou: por que essa série te emocionou tanto? E eu percebi que tinha a ver com minhas reflexões sobre maternidade. Há alguns anos venho me dedicando cada vez mais a fazer caminhadas, e foi um processo interessante dividir isso com meus filhos. 

No começo, eles não queriam que eu fosse viajar sozinha. Aos poucos, foram entendendo o quanto me fazia bem e o quanto isso expandia os nossos horizontes. Eu trazia para eles objetos encontrados nos caminhos, fotos, histórias… e eles foram aprendendo a apreciar isso. Naquele momento, eu estava muito emocionada com a forma que construímos a autonomia nas nossas relações, e também com a possibilidade de compartilhar com os filhos o encantamento pelo mundo. Acho que é o que eu posso fazer de mais valioso para eles: incentivá-los a olhar para o mundo com curiosidade e comunicar que eles podem ir até onde quiserem.

As imagens do livro foram formadas por folhas, flores e terra do sertão mineiro (Laura Gorski/Divulgação)

O que significa ser uma mãe caminhante? Vocês veem as figuras maternas como seres essencialmente caminhantes?
IM: Ser caminhante, na minha opinião, é uma forma de estar no mundo. Uma forma que investe no encantamento e na curiosidade por tudo que há a ser descoberto. É alguém que quer traçar os próprios caminhos. Ser mãe pode ser isso também, porque a maternidade faz a gente questionar tudo que foi previamente traçado. Não sei se todas as mães se sentem assim, acho que há quem prefira se manter na estrada bem conhecida. De toda forma, é uma jornada e tanto.

LG: Em essência, acho que as mães são caminhantes e estão sempre abrindo caminhos, criando trilhas possíveis, viabilizando rotas na intenção do cuidado e com o desejo de que a vida frutifique, em meio a tantas demandas cotidianas. Para mim, ser uma mãe caminhante significa, antes, ser uma pessoa caminhante: que segue percorrendo e atualizando os caminhos antigos e os desejos por novos. São caminhos de liberdade, de invenção de si, de invenção de mundos. Quando penso na minha filha e na maternidade, acredito, como a Bel escreve no livro, que os nossos caminhos nos realizam e comunicam aos filhos sobre a importância de seguir na direção dos nossos desejos. Ser uma mãe caminhante significa tanto caminhar sozinha e voltar com uma bagagem de descobertas, com novos ares e novas terras, como também caminhar junto com os filhos e descobrir, inventar e desenhar caminhos. Depois de ser mãe, nunca mais a caminhada é sozinha. Por mais que os filhos não estejam sempre juntos, eles vão na mochila e no coração. 

O livro também fala sobre a jornada emocional de um filho confrontado com os sentimentos dos momentos em que se vê separado da mãe. Como vocês enxergam essa ausência?
IM: Saber se distanciar dos filhos, e fazer isso sem angústia, é um aprendizado que se impõe na vida das mães em algum momento e isso pode se dar por vários motivos diferentes. Nos últimos anos, eu e meus filhos tivemos de lidar com a nova realidade de vivermos em casas separadas durante uma parte do tempo, quando eles estão com o pai. Há uma tristeza e um medo nisso, assim como quando vou viajar ou em outros momentos que pedem uma distância física. Mas há também o entendimento da força do vínculo, que é tão maior, assim como a aceitação e valorização de que somos todos indivíduos, cada qual com suas vidas, vontades, particularidades e escolhas.

Como vocês encaram cada reencontro após cada separação e ausência? Quais sentimentos se envolvem nas partidas e retornos?
LG: Depois que virei mãe, a partida já acontece com o desejo do retorno, porque esse desejo passou a ser combustível para sair. Como a Bel diz no livro e eu adoro esta passagem, “o caminho é um só”. 

Minha filha ainda é pequena e desde que ela nasceu as caminhadas têm sido mais juntas do que individuais. Considerando que uma ida ao supermercado ou uma ida ao parque pode ser uma caminhada, existem brechas que se apresentam em caminhadas inesperadas, então procuro estar atenta aos sinais. As flores no chão são este convite para mim. Uma pausa poética em meio a um cotidiano intenso. A maternidade me ensinou o valor e a importância do momento presente e eu tento perseguir isto. Estar inteira quando estou com a minha filha e estar inteira quando estou em meus momentos sozinha, com minhas demandas, meus afazeres, meus trabalhos. 

IM: Me lembro com muita força do dia em que voltei do Caminho do Sertão, uma caminhada de 200 km muito importante e transformadora que acontece no sertão mineiro. Percorri essa jornada no ano passado, de onde trouxe a terra de presente para a Laura. Foi um longo e emocionante percurso, mas foi só quando estava finalmente com eles, mostrando fotos, vídeos e tantas bolhas nos pés, que desandei a chorar. Compartilhar com eles a emoção do caminho, seja ele qual for, assim como eles fazem comigo ao me contar de algo novo que viram ou aprenderam, é um dos aspectos mais lindos da nossa relação. 

O livro é repleto de simbolismos, e o próprio narrador admite-o em uma passagem sobre um caminho tão seco que deixou a mãe com terra por todo o corpo e sobre entender que isso era uma metáfora para outra coisa. O que essa percepção diz sobre a conexão entre mães e filhos?
IM:
Eu acho bonita a ideia de que as vivências da mãe e do pai podem virar repertório para a imaginação dos filhos. São essas as primeiras pessoas a trazerem notícias do mundo lá fora para eles. Pode ser desta relação que nascerá o encantamento com o mundo, com a percepção de que há tanta coisa a ser vista. 

De onde surgiu a ideia das colagens e intervenções com elementos da própria natureza? 
LG:
A ideia das ilustrações já me acompanhava em trabalhos anteriores, porque é uma prática de muitos anos trazer terras, flores e folhas das caminhadas. Fui criando uma coleção que vai desembocar em um próximo trabalho. As imagens são fruto de caminhadas de diferentes momentos, somando as minhas e as da Bel, que me trouxe as terras que foram o ponto de partida para o livro. Quando li o texto pela primeira vez, visualizei os pés. A importância de um passo depois do outro para a caminhada acontecer é a essência da caminhada e do caminhar.

Então pensei que eu ia precisar dos pés da Bel e de seus filhos e que os pés deles tinham de estar presentes no livro. Fizemos então um encontro no meu ateliê para desenhar os contornos dos pés com as terras do sertão mineiro e plantas que tinha na minha coleção. O corpo da mãe era fundamental e os dos filhos também. De certa forma, as imagens são uma coleção de paisagens: de dentro e de fora. Paisagens do mundo poético, do mundo interior e do mundo de fora.

Que livro você gostaria de ter lido na infância?
IM: Quando li essa pergunta, o primeiro livro que me veio à cabeça foi O gritalhão, de Philip Waechter e Moni Port. Ganhei esse livro de um amigo querido há alguns anos e a emoção de lê-lo nunca me abandonou. Trata-se de uma história sobre uma menina que tem um pai que grita muito. Ele grita tanto, e aquilo machuca tanto ela, que um dia ela decide ir embora. Para além de quaisquer paralelos que se possa fazer com a história pessoal de cada um, este livro me emociona porque abre a possibilidade de nós olharmos para os adultos sem idealização. Pensando agora, acho que foi isso que tentei fazer com Minha mãe caminha também. Ao podermos amar sem idealizar, ganhamos em liberdade e autonomia.

Como podemos incentivar o hábito de leitura nas crianças?
LG: Lendo com e para as crianças, fazendo livros inventados com elas, fazendo com que os livros façam parte da vida cotidiana, do ambiente, das paisagens. Para mim, desde a infância, o livro sempre foi um lugar-casa, um lugar para onde voltar. Um lugar de pertencimento, de viagem e de criação de mundos. O livro é um caminho e cada livro novo é uma caminhada que se apresenta. E os livros conhecidos, aqueles que a gente lê e relê, são também como as caminhadas, podemos fazer as mesmas e algo novo sempre se apresenta ou algo conhecido nos revisita.

Quem escreveu esse texto

Jaqueline Silva

É estudante de Jornalismo na ECA-USP e assistente editorial na Quatro Cinco Um.