A revolução foi televisionada

50 anos da Revolução dos Cravos,

A revolução foi televisionada

Ex-repórter da TV Globo, Sandra Passarinho relembra como foi cobrir a chegada da democracia em Portugal em tempos de ditadura ferrenha no Brasil

17abr2024 • 23abr2024 | Edição #80
Portugueses reunidos em ato do Partido Comunista dias antes da eleição que elegeu a primeira Assembléia pós-ditadura, em 20 de abril de 1976 (AFP via Getty Images)

Aquela quinta-feira de abril de 1974 parecia tranquila para a jornalista Sandra Passarinho, àquela altura uma repórter de 24 anos que havia começado como estagiária na TV Globo em 1969 e logo se destacou na cobertura de notícias internacionais. Com a escala marcando sua entrada à tarde, resolveu aproveitar a manhã ensolarada no Rio de Janeiro para dar um mergulho no mar. Ao voltar para casa, havia um recado para ligar com urgência para a emissora.

Sandra foi surpreendida, assim como boa parte do mundo, pelo movimento de jovens militares que decidiram derrubar a ditadura mais longeva da Europa. “Você vai junto com o [cinegrafista] Orlando Moreira para Portugal cobrir a revolução”, ouviu. “Me deu um frenesi na hora!”, lembra a jornalista, hoje com 73 anos.

Com os aeroportos em Lisboa fechados, Sandra e Moreira — “nosso exército Brancaleone” — pegaram o primeiro voo para Madri. De lá, seguiram de carro por doze horas até a capital portuguesa, onde chegaram no começo da noite do dia 27. Mal desembarcaram no hotel Tivoli, na avenida da Liberdade, e os dois já saíram às ruas para conversar com comerciantes, militares, donas de casa, trabalhadores.

A jornalista Sandra Passarinho (Renato Velasco/Divulgação)

Embora não tenha presenciado o “estouro da boiada”, como se refere ao dia que marcou a queda de quase cinco décadas do regime salazarista, a repórter diz que a experiência daqueles dias a marcaria para sempre. “Sem o apoio popular, eles não teriam conseguido. Para fazer o estouro da boiada, que já havia sido tentado no mês anterior, mas não deu certo, as tropas foram para a rua junto com o povo. O povo e a rua”, recorda.

Nos dias que se seguiram ao grande levante popular, repórter e cinegrafista se desdobraram para conseguir noticiar a soltura de presos políticos, a volta de lideranças políticas que estavam exiladas, os movimentos para formação do novo governo. “A primeira semana foi uma loucura. Nós mal dormíamos. Havia muita coisa acontecendo simultaneamente.”

Sandra lembra em especial o 1º de maio — primeiro Dia do Trabalho pós-ditadura, que proibia as manifestações populares — como uma segunda Revolução dos Cravos.

“Me emociona cada vez que eu me lembro porque eu era uma jovem vinda do Brasil, onde nós vivíamos uma ditadura ferrenha, para fazer reportagem no país onde estava acontecendo o oposto”, descreve ela, que havia sido impedida de continuar o curso de ciências sociais na Universidade Federal do Rio de Janeiro, fechado pelos militares. “Uma revolução sem violência, sem os horrores sanguinários das revoluções latino-americanas, uma grande lição que Portugal deu ao mundo.”

Exército Brancaleone

Não que tenha sido fácil para uma repórter iniciante cobrir a chegada da democracia depois da “longa noite” de 48 anos de um projeto autoritário de país. Talvez seja difícil imaginar para quem já cresceu em tempos em que qualquer celular à mão consegue captar e transmitir imagens em segundos, mas as câmeras de então usavam rolos de filme de dez minutos, que precisavam ser trocados em escuro absoluto, sob risco de queimar as imagens captadas.

“Chegava um determinado momento, acontecesse o que estivesse acontecendo, tínhamos que voltar para a emissora para revelar os filmes”, lembra Passarinho. Ela e Moreira estavam entre as dezenas de equipes de emissoras de televisão do mundo inteiro que chegaram a Portugal para registrar a queda do salazarismo. Após revelar as imagens e editar as reportagens na Radiotelevisão Portuguesa (RTP), era preciso entrar na fila para enviar o material via satélite a tempo do Jornal Nacional.

A jornalista guarda o nome de uma funcionária da RTP que acolheu a jovem repórter em sua primeira grande cobertura internacional. “Dona Manuela Furtado era a pessoa que estava encarregada de recepcionar as equipes estrangeiras e foi extremamente gentil com a gente. Ela percebeu logo que nosso exército Brancaleone ia ter muitas dificuldades de trabalho — duas pessoas para cobrir uma revolução.”

Envolvida na incansável rotina da cobertura, a repórter tinha apenas uma ideia vaga da repercussão do fim da ditadura portuguesa no Brasil. Essa ideia ficou mais clara quando a viagem foi estendida e ela e o cinegrafista acabaram ficando cinco meses na Europa. Além dos desdobramentos da Revolução dos Cravos — foram seis governos provisórios até a promulgação de uma nova Constituição, em 1976 —, os dois cobriram eleições na França, referendo sobre aborto na Itália e a morte do general Franco na Espanha.

A intensificação da cobertura fez com que a Globo abrisse seu primeiro escritório na Europa, em Londres, e Passarinho se tornou a primeira correspondente da emissora no continente. Da Inglaterra, a repórter cobriu o nascimento do primeiro bebê de proveta, em 1978, acompanhou o papa João Paulo 2º em viagens à Irlanda e Turquia, em 1979, visitou um campo de refugiados da Guerra do Vietnã na Tailândia, em 1980.

Foram quase cinquenta anos de reportagens para a Globo, com um breve período de quatro anos em que trabalhou na extinta TV Manchete. Sandra Passarinho deixou a emissora em 2019 e não titubeia quando questionada qual foi a cobertura mais importante da carreira. “A Revolução dos Cravos tem um lugar especial na minha vida. Foi a primeira coisa grande que fiz, uma dificuldade danada, mas nada disso você aprende na escola.”

Especial 50 anos da Revolução dos Cravos

Especial 50 anos da Revolução dos Cravos realizado com o apoio do Camões Instituto da Cooperação e da Língua e da Fundação Fernando Henrique Cardoso

Quem escreveu esse texto

Amauri Arrais

É jornalista e editor da Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #80 em abril de 2024.