
O fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, morto em 23 de maio, aos 81 anos, se tornou mundialmente famoso quando trabalhava na agência Magnum. Foi na cooperativa de fotógrafos fundada em 1947 por Robert Capa e Henri Cartier-Bresson que ele fez as fotos da tentativa de assassinato do presidente Ronald Reagan, as imagens do garimpo de Serra Pelada e realizou o projeto Trabalhadores, entre outros muitos trabalhos.
Salgado foi chamado pela Magnum em 1979, depois de passar pelas concorrentes Sygma e Gamma e ter feito uma elogiada cobertura da Revolução dos Cravos (1974), do final das guerras coloniais portuguesas na África e dos primeiros anos da independência de Angola e Moçambique. Na cooperativa, conviveu com grandes nomes da fotografia de seu tempo, como o fundador Cartier-Bresson, James Nachtwey, George Rodger, Susan Meiselas, Miguel Rio Branco e muitos outros.
A Magnum viveu e cresceu sob a aura de Capa e Bresson, especialmente de sua concepção do trabalho fotográfico, expressa em conceitos como “se a foto não é boa, é porque não foi feita suficientemente de perto” (Capa) ou o “instante decisivo” (Bresson). Sua pegada era predominantemente jornalística, e os mandamentos dos dois fundadores guiavam os novos componentes daquele clube exclusivo dos maiorais.
Foi uma surpresa quando depois de quinze anos, em 1994, Salgado anunciou que sairia da Magnum para montar com Lélia Wanick Salgado sua própria agência, Amazonas Images. Ele tinha um diagnóstico sobre a agência naquele momento: a imprensa estava decaindo e já não conseguia gerar receitas para a cooperativa como no passado. Salgado propunha criar núcleos dedicados a projetos autorais como os seus, que logo gerariam mais receita do que as pautas “quentes”. Foi voto vencido e preferiu sair. Nachtwey saiu em 2001.
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No livro inédito Depois daquele instante decisivo: os mandamentos de Capa, Bresson e Salgado, do qual a Quatro Cinco Um extraiu os dois trechos a seguir, procuro explicar os conceitos de Capa e de Cartier-Bresson e a ideia de Sebastião Salgado.
1.
Quando publicou a antologia The Decisive Moment, em 1952, Cartier-Bresson já era consagrado, saudado como gênio das artes ao lado de Picasso e Matisse, superando com sua obra os limites até então impostos ao reconhecimento da fotografia como arte.
O livro de 1952 foi lançado na França como Images à la Sauvette (editora Verve), título que remete a uma expressão idiomática de difícil tradução. “À la sauvette” é o estado de dissimulada prontidão em que se mantêm os camelôs ou vendedores ambulantes irregulares, sem licença, prontos para fugir de qualquer fiscalização. “Imagens fugazes”, “imagens fugidias”, “imagens prontas para escapar” são possíveis traduções.
O título não foi uma escolha fácil. Cartier-Bresson queria muito expressar a dimensão instantânea da imagem que sua fotografia captava. Para tanto, tentou pelo menos 45 opções — estão em uma folha datilografada, cuja reprodução foi publicada na re-edição fac-similar de 2014 (ed. Steidl),
com um texto de Clément Chéroux denominado “Uma Bíblia para fotógrafos”, que narra a história da obra e seu impacto. Desse total, doze opções contêm a palavra “instante” ou uma variação; onze usam “tempo”; e quatro usam “momento”.
Foi uma surpresa quando Sebastião Salgado anunciou que sairia da Magnum para montar sua própria agência
A capacidade de reter a fugacidade do tempo era parte essencial de seu trabalho, a julgar pelos títulos que Cartier-Bresson tentou para a obra. Ao final, a opção recaiu sobre “Images à la Sauvette”. Mas, ao abrir o volume, o leitor deparava com o texto de apresentação escrito pelo fotógrafo, que ganhou o nome “L’instant décisif” (O instante decisivo), originalmente candidato a título do livro inteiro.
Naquela altura, a obra de Cartier-Bresson já havia sido tema de grandes exposições internacionais, ocupando um espaço jamais atingido por um fotógrafo. O livro foi lançado em grande formato, com uma capa desenhada especialmente por seu amigo Henri Matisse, gênio inconteste da pintura já desde o início do século, o que também é revelador da importância que o fotógrafo já tinha conquistado naquele tempo.
Imediatamente após seu lançamento na França, a obra ganharia uma versão fac-similar norte-americana, da editora Simon and Schuster. E nenhuma tradução literal do título agradava autor e editores. Depois de várias tentativas, optaram por dar à obra o nome do prefácio: “The Decisive Moment”. A partir dessa publicação, “o instante decisivo” se tornou o lema definidor da obra de Cartier-Bresson.
Da mesma forma que o grande amigo Capa, Cartier-Bresson refletiu em seus textos a teoria da sua fotografia e prescreveu procedimentos técnicos, estéticos e éticos necessários para quem o quisesse seguir. Seus ensinamentos também se tornaram mandamentos da fotografia, cláusulas pétreas da constituição da boa arte fotográfica. A capacidade de escrever ensaios que traçam o arcabouço teórico de certa técnica ou momento da arte e ao mesmo tempo de realizar em sua plenitude a perfeição desse estilo faz Capa e Cartier-Bresson corresponderem na fotografia contemporânea ao que Leonardo da Vinci foi para a arte do Renascimento: grandes teóricos e gênios realizadores da perfeição de seu estilo.
O texto “O instante decisivo” continha diversas ideias sobre fotografia, além da questão do instantâneo fotográfico.
Tirar fotografias significa reconhecer — simultaneamente e em uma fração de segundo — tanto o fato em si quanto a rigorosa organização das formas visuais que lhe dão sentido. É colocar a mente, o olho e o coração no mesmo eixo. Esse é o “instante decisivo” do ato fotográfico.
Mas, além dessa sofisticada operação que envolve diversas decisões e escolhas simultâneas, o texto de apresentação da antologia de suas fotos contém outros mandamentos que expressam como Bresson entendia a fotografia, que se realizava plenamente na “reportagem fotográfica”.
2.
Considerado o maior fotógrafo em atuação no mundo no início do século 21, Sebastião Salgado produz suas fotografias de uma forma inteiramente diferente daquela que caracterizou o trabalho de Cartier-Bresson, seu amigo e colega na agência Magnum. O estilo de trabalho começou a se revelar uma alternativa ao adotado por Bresson e pelos outros fundadores da Magnum ao longo dos anos 80, quando o brasileiro ainda fazia parte da cooperativa criada em 1947 por Cartier-Bresson e Capa.
As diferenças de estilo se aprofundaram no início dos anos 90 e Salgado decidiu deixar a empresa, tornando-se um dos poucos casos de sócios saídos da Magnum em sua história.
Salgado fala poucas vezes do assunto, mas quando perguntei sobre fotojornalismo e a ideia do “instante decisivo” e como ela o influenciou, ele me disse: “Meu trabalho não tem nada a ver com o conceito de Cartier-Bresson”. Em seguida, explicou: “Eu nunca fui fotojornalista. Eu fiz outro tipo de fotografia. Fotojornalista é alguém que trabalha para um jornal, que faz uma foto por encomenda, que vai e faz um trabalho pontual. Eu raramente fiz isso, fiz pouquíssimas vezes, quando precisava de dinheiro”.
Você falou do instantâneo: como isso ecoa ou dialoga com a ideia de “instante decisivo”?
É diferente. Fui muito amigo do Cartier-Bresson, foi um fotógrafo que me ajudou, trabalhamos juntos na Magnum durante quinze anos, mas eu o conheci muito antes. De onde ele veio, da cultura dele, tudo bem, ele operou num “instante decisivo”. Ele sempre esteve tangente aos fenômenos. Tem um trabalho fantástico, foi um grande fotógrafo. Mas o meu conceito é diferente, eu vim de outra realidade, vim de um Brasil militante, social, e a fotografia para mim é muito mais um fenômeno do qual participo do que algo que toco simplesmente.
[Salgado pediu então meu caderno de anotações e, com a caneta hidrográfica preta, de ponta grossa, que costuma ter em seu bolso, desenhou um gráfico.] Se eu pegasse uma tangente, um fenômeno fotográfico estava ocorrendo; se aqui eu começasse a me movimentar, por exemplo, com as renas na Sibéria, ia subindo, evoluindo durante o dia, e eu vou vivendo esse fenômeno. E vou tirando as minhas fotografias. Aqui está forte, eu tiro uma foto. Aqui está forte, eu tiro outra. [Ele marca pontos na elevação inicial da curva.] Aqui a tangente é positiva. Quando eu passar para o outro lado, a tangente será negativa. Mas quando eu atingir o ápice, aqui, a tangente é igual a zero. Então cheguei no auge do fenômeno. Aqui, eu tenho a melhor foto.
‘Vim de um Brasil militante, a fotografia para mim é muito mais um fenômeno do qual participo’
O Cartier-Bresson tem um método dele, o conceito dele é o momento da tangente zero. Ele tangencia o fenômeno, mas a foto dele era aqui.
Como se ele só clicasse no ápice.
É. E para mim o conceito é diferente, essa grande tangente que vai chegar ao ápice é composta de tangentes menores que vão acontecendo, que vão tocando. E a cada momento eu vou trabalhando nelas. Eu posso chegar nessa e posso não chegar. E numa dessas tangentes pequenas eu posso ter a minha foto. Ela pode ter uma tangente zero. Eu vivi o fenômeno, entrei numa tribo, vivi dois meses, tive o prazer imenso de ir caçar com essa tribo, de pescar, de participar das cerimônias. Essa foto eu recebo, ela vem a mim, e eu só tenho que ter a vivacidade de capturar. É outro conceito. Apesar de eu ter uma admiração profunda pelo Cartier-Bresson, de compartilhar o mundo com ele, a curiosidade de ir ver, são escolas diferentes.
Ao usar sua formação de economista para expressar com fórmulas matemáticas o que considera a diferença entre seu estilo de trabalho e o de Cartier-Bresson, Salgado reproduz uma curva de sino como as que são usadas para expressar evolução do valor ao longo do desenvolvimento de um produto no mercado. No caso do processo descrito por Salgado, quando a taxa de “inovação” (de aprendizado do fotógrafo sobre seu tema) cai, ele dá por terminada a documentação. Chamo o gráfico proposto pelo fotógrafo de “curva de Salgado”, em contraposição ao “instante decisivo” de Bresson.
A diferença entre o método de trabalho do brasileiro e o da Magnum, na época inspirado por Cartier-Bresson, se tornou tema de desentendimento no fim dos anos 80. No livro autobiográfico Da minha terra à Terra (Paralela, 2014), Salgado descreve os motivos estratégicos e econômicos que o afastaram da Magnum, que expressam outro aspecto das diferenças entre seu trabalho e aquele gênero de reportagem fotográfica produzida sob o espírito que guiara a agência Magnum por décadas.
Os projetos de Salgado se distinguem dos trabalhos dos colegas, como ele descreve no livro:
Às vésperas do século 21, o mundo no qual a agência havia sido criada, em 1947, e o tipo de imprensa à qual havia pertencido não existiam mais: era preciso evoluir. Eu não era o único a fazer reportagens que não seguiam as notícias imediatas, mas, sim, o curso do mundo, havia também Gilles Peress, Abbas Attar, James Nachtwey… Nossas fotos não se encaixavam à maneira de nossos colegas que trabalhavam para as revistas em cores ou para a publicidade e os relatórios anuais. Uma divisão em diferentes setores se impunha, a fim de responder às necessidades específicas dos fotógrafos, de melhor gerenciar seus arquivos e de melhor comercializar suas imagens. Propus à Magnum a criação de unidades de produção. Tenho certeza de que isso teria permitido maior rentabilidade e coerência. Minha ideia não foi aceita. Levei dois anos para me decidir, mas acabei deixando a agência.
No livro, ao citar seus trabalhos, Salgado usa o termo “projeto”. De certo modo, podemos dizer que o conflito entre Salgado e a Magnum representa o embate entre duas concepções de trabalho fotográfico: a jornalística, da “reportagem fotográfica”, como a de Capa e Cartier-Bresson, e a documentarista, do “projeto fotográfico”, de Salgado.
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