Coluna

Kalaf Epalanga

Um benguelense em Berlin

Por trás do rebolado

Não interessa em que lugar do mundo ou em que condições de vida um descendente de africano esteja, a dança será sempre o dialeto que nos liga a todos

01dez2020 | Edição #40 dez.2020

Nada no Brasil é mais punk que o funk carioca. Punk, o arquétipo estético e musical, para rebelião e alienação adolescente, frustrada com a falta de perspectiva ou simplesmente vitima do tédio urbano. Funk, música de preto e favelado assente nos pilares do “faça você mesmo”, pois os milagres são como taxistas: não gostam de circular na periferia. O establishment britânico ficou chocado com o punk, e, como tudo o que irrita a rainha Elizabeth 2a vende jornais, a imprensa não demorou a dar capa aos rostos mais proeminentes do movimento, fixando a indumentária idealizada pelo casal Malcolm McLaren e Vivienne Westwood: couro preto fizesse calor ou frio, coleiras caninas, alfinetes de segurança como brincos e cabelos Mohawk fluorescentes se tornaram um estilo nacional.

No maior país da América do Sul, dizer que o funk é odiado é eufemismo. E de pouco adianta fazer desfilar os números: no que diz respeito à cultura negra, raras são as vezes em que grana consegue comprar amor — mesmo com o Sintonia do KondZilla na Netflix e o reconhecido potencial de ser o próximo reggaeton e virar bem valioso, tal qual Carnaval, passe de futebolista e bisturi de cirurgião na lista dos interesses mais procurados pelos gringos. O funk só tem a si mesmo. Todo sábado, com 10 a 15 mil pessoas à mercê das centenas de decibéis de som que agitam os seus fluxos. E o grave terapêutico e unificador que faz o coração acelerar no swing do tamborzão. O grave é o elemento mais democrático do baile. Todos o sentem, distribuído equitativamente por todas as partes do corpo. Se o grave do funk não te exorcizar, então ele não é para você. 

Para Taísa Machado, atriz, escritora e pesquisadora de dança, corpo e sexualidade feminina, a catarse se deu no Complexo do Lins, no Rio, em 2013. À época, as manifestações pelos vinte centavos subiam de tom e, aos protestos contra o aumento da tarifa do ônibus e a violência policial, juntaram-se vozes que nunca andaram de ônibus ou tampouco sofreram com a violência dos agentes do estado. Naquele momento, ninguém queria ser apanhado em cima do muro da história, e, num ímpeto patriótico, vestiram a camisola canarinha e saíram no embalo, somando à pauta protestos contra a Copa, a Olimpíada, a má qualidade dos serviços públicos e a corrupção.  

No maior país da América do Sul, dizer que o funk é odiado é eufemismo

A Chefona Mermo, como é conhecida Taísa, também atravessava um momento de transformação. Sua trajetória artística até então havia sido no coletivo teatral Tá na Rua, de Amir Haddad, mas sentia que o teatro não era suficiente. Em vez de ficar em casa olhando para o teto e conferenciando com seus botões, saiu para a balada lá para os lados da Lins de Vasconcelos no — ela, tal como Haruki Murakami, pertence ao grupo de pessoas que pensam melhor em movimento. No caso do escritor e tradutor japonês, o remédio é correr; para a Chefona, dançar é a parada. De preferência funk. 

O Complexo do Lins estava antológico naquela noite. Uma nuvem de gás carbônico libertado por 15 mil narizes pairava no ar. Várias estruturas de ferro semelhantes às vistas em eventos como o Rock in Rio impunham um aparato de evento profissional, e, tal como no festival da família Medina, havia até zona vip com fruta e caixas de isopor esfriando garrafas de Chandon. Em cima do palco, um mc cujo nome não merece nem nota de rodapé, já que ao seu lado estava uma bailarina, o tipo de mulher que provoca torcicolo à sua passagem, com o tipo de corpo que aparece na busca do Google quando se procura por “gostosa”. Lá estava ela, magnânima, com uma burca cobrindo o rosto — não com o propósito de oferecer recato, mas sim para dar um toque de mistério e concupiscência à sua figura. Para a apoteose, foi escolhido na audiência um homem, uma figura anônima que imediatamente após subir ao palco lhe foi agraciada uma valente surra de bunda. 

Todos os homens presentes no baile — dos que trabalham à margem da legalidade aos pais de família que estão no baile para ganhar o sustento do lar, vendendo bebidas ou alugando sistema de som —,  todos, sem exceção, queriam estar no lugar do felizardo cujo rosto era surrado por aquele par de nádegas voluptuosas. Os traficantes hipnotizados por aquele movimento libidinoso aproximaram-se da boca de cena, como é norma quando a temperatura no baile chega ao rubro — a felicidade nunca é como a gota de orvalho numa pétala de flor, ela não brilha tranquila nem tampouco oscila ou cai como uma lágrima de amor. Na favela, a felicidade do bondão é ruidosa e se manifesta com tiros para o alto. Taísa, que também estava à frente do palco, colada à barra metálica que separava o povo eufórico e a mulher mais desejada do Brasil naquele instante, pensou que, se tivesse uma 7,62 na mão, também dispararia para o alto, pois também ela transbordava de felicidade.

Saberes inatos

Aquele momento poderá ter sido a epifania, a gota de orvalho que faltava para fazer transbordar o copo das certezas e colocar Taísa no caminho de descobrir a ciência por detrás do rebolado. Ali, em pleno baile entre o grave do tamborzão e o inconfundível “plápláplápláplá” de metralhadora, com invólucros de bala ainda quentes chovendo sobre ela. Naquele momento, soube que só o teatro não lhe seria suficiente. Toda a sua expressão artística teria de ter o mesmo impacto transcendente que aquela surra de bunda.

E mais, teria de carregar os saberes inatos de mulheres pretas que se manifestam tanto nos movimentos das danças de matriz africana como em todas as suas ramificações diaspóricas como o dancehall ou twerk. Saberes ligados ao estudo do corpo e da espiritualidade e o lugar que cada indivíduo ocupa e como esse corpo é percebido, valorizado e respeitado. Observando a bailarina do Complexo do Lins exercendo sua profissão, mexendo a bunda imperturbável ao caos à sua volta, entregue ao seu rebolado vertiginoso no ritmo da maior fenómeno musical saído das favelas do Rio. Reforçando a máxima  que essa mentora do projeto Afrofunk atribui à escritora, cronista e baileira de carteirinha, Ana Paula Lisboa: funkeiro não tem medo de nada, nem de bala de fuzil.

Em Angola, um dos mantras que nos governam é: “Mesmo se não está bom, você dança só”. Serve para apaziguar nossas angústias sociais e combater a depressão e outras frustrações individuais. Descobre-se nas palavras de Taísa Machado esse mesmo lugar com a questão “Que artista é esse que se desenvolve na guerra?”. Esse ponto reforça o princípio de que entre os povos negros existe um código que resistiu à maior das barbáries, manteve-se vivo mesmo durante os períodos de maior desalento. Um fogo impossível de extinguir. Não interessa em que lugar do mundo um descendente de africano esteja ou em que condições de vida, a dança será sempre o dialeto que nos liga a todos. Independentemente do estilo, seja passinho, kuduro, batuku, ndombolo, ngoma, azonto, vosho, quadradinho ou twerk. É tal como a autora afirma de forma tão sucinta: “A maneira como o povo preto entende a dança é muito diferente. A gente aprende a dançar experimentando a dança. É muito diferente da branquitude e do pensamento nórdico de entender a dança. A dança pro povo preto tá dentro da formação como cidadão, não é só divertimento. Mas isso pode não ser tão claro pra quem vê de fora. Nasceu alguém? Dança. Morreu alguém? Dança. Casou alguém? Dança. Tudo dança, faz parte, entendeu? Menstruou? Dança. Trepou? Dança. Tudo tem que dançar, faz parte da formação do cidadão”.

Dancemos então, porque é a dançar que aprendemos a ser livres.

Quem escreveu esse texto

Kalaf Epalanga

Escreveu Também os brancos sabem dançar (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #40 dez.2020 em novembro de 2020.