Coluna

Kalaf Epalanga

Um benguelense em Berlin

Passagem do meio

O julgamento do massacre do navio ‘Zong’ terminou sem condenados, mas inspirou livros e pinturas retratando os horrores da escravidão

01out2021 | Edição #50

“Era um sonho dantesco… o tombadilho/ Que das luzernas avermelha o brilho./ Em sangue a se banhar./ Tinir de ferros… estalar de açoite…/ Legiões de homens negros como a noite,/ Horrendos a dançar…”
O navio negreiro, Castro Alves

“The child/ Floats towards me, bloodied at first, but the sea/ Will cleanse it. It has bleached me too of colour,/Painted me gaudy, dabs of ebony,/ An arabesque of blues and vermilions/Sea-squats cling to my body like gorgeous/ Ornaments. I have become the sea’s whore,/ Yielding.”
Turner, David Dabydeen

Acto 1º

Ao descrever as atrocidades cometidas no comércio de africanos escravizados, Olaudah Equiano, no seu livro de memórias The Interesting Narrative of the Life of Olaudah Equiano, Or Gustavus Vassa, The African, publicado na Inglaterra em 1789, narra o momento em que dera à costa, depois de ter sido sequestrado de sua aldeia, aos dez de idade, juntamente com a sua irmã, de quem mais tarde seria para sempre separado. A primeira coisa que o impressionou foi o mar e um navio negreiro ancorado à espera de receber sua carga humana. O espanto rapidamente se transformou em terror quando se viu a bordo. Dentro de um mundo de maus espíritos que desejavam a sua morte, ao entrar no porão, as suas narinas foram assaltadas por um odor nunca antes experimentado. A repugnância foi tanta, que lhe restou apenas o consolo das lágrimas.

Acto 2º

Tendo iniciado o seu trabalho sobre interseccionalidade, traumas coloniais, vozes silenciadas e racismo na academia e nas artes, Grada Kilomba faz da memória a matéria-prima: “Um barco, no imaginário ‘português’, é facilmente associado à glória e expansão marítima; uma narrativa inscrita nos vários monumentos públicos junto ao rio da cidade, que romantiza o passado histórico colonial, e que apaga um dos mais longos e horrendos capítulos da humanidade — a Escravatura”. Esta é a sua primeira instalação performativa de grande escala, montada na praça do Carvão em Lisboa, ocupando uma faixa de 32 metros à margem do rio Tejo. Além do coro de vinte vozes, entre os quais percussionistas e bailarinos afrodescendentes, a peça central é uma escultura constituída por 140 blocos, nos quais foram inscritos poemas, dispostos de forma a reproduzir imagens desconcertantes, como as gravuras que conhecemos do porão do navio negreiro Brooks, no qual foram instalados de forma desumana os corpos africanos escravizados pelos impérios europeus. É, segundo a artista com quem tive a honra de colaborar musicalmente nesse projecto, “um jardim de memória” e uma “possibilidade de contemplação de futuro”.

Tanto Olaudah Equiano como Grada Kilomba mereciam dissertações mais extensas, mas os barcos que navegam nas suas obras levaram-me até a um dos quadros mais icónicos de William Turner, um dos maiores paisagistas de todos os tempos, cujo estilo lançou as bases do Impressionismo. O quadro de 1840, cujo título original era Slavers Throwing Overboard the Dead and Dying, Typhon Coming On, mais conhecido pela sua abreviatura, Slave Ship, levou-me a dois poemas épicos, Turner, de David Dabydeen, e O navio negreiro, de Castro Alves. E como todo o drama contido no seu estilo exclamativo e hiperbólico faz mais sentido quando declamado, voltei para a voz rouca de Maria Bethânia, encontrei-a num vídeo, vestida de branco, pés descalços, cabelos grisalhos, jóias tilintando, dando som e ritmo ao movimento das suas mãos largas, generosas, como se partilhando oferendas, anunciando: “Estamos em alto-mar…”.

No porão do navio, onde o breu é absoluto, a única posição possível para os corpos africanos acorrentados é a horizontal, e a altura não passa de um metro; anteparas separam homens, mulheres e crianças em grupos, impossibilitando trocas de afeto, conversas conspiratórias e desejos de insurreições. O suicídio, último gesto desesperado para recuperar o controle do próprio destino, é um caminho longo e tortuoso. Nas áreas de circulação permitidas, homens armados e redes impossibilitavam lançar-se ao mar, o único inferno tolerável. Da dieta de arroz e água servida diariamente, quem opta pelo jejum é forçado a comer debaixo de chibatadas.

Estamos em alto-mar.

Ondas, nuvens carregadas, um navio com os mastros inclinando-se para o sol no centro da pintura e tentando superar as vagas que sobre ele se abatem. A proa aponta na direcção da nuvem tenebrosa no canto superior direito. Peixes e monstros marinhos, num frenesi impiedoso, atacam a perna humana no canto inferior esquerdo, que — juntamente com um coro de mãos naufragadas em gesto de denúncia — aponta na direcção do navio homicida. Testemunhas da tragédia, os grilhões parecem desafiar as leis da física, flutuam sobre as águas, reclamando a função de lápide, apontando — neste oceano jazem corpos africanos.

O mar revolto fez desaparecer a linha do horizonte, e as nuvens e as ondas abrem trilhos em direção ao sol, eixo da obra e fonte de luz. Um carnaval de cores vibrantes que se assemelham às chamas de uma fogueira faz com que a escuridão e os tons castanhos da água se destaquem, obrigando o espectador a fixar o olhar primeiro nos sujeitos da pintura, o navio e os escravos que se afogam.

O massacre do Zong

Estávamos em alto-mar…

A tripulação do Zong concordou por unanimidade, e o banquete foi servido aos tubarões. Começando pelas mulheres e crianças, 54, seguindo-se dois dias depois 42 homens numa tempestade que lembrava o dia do Juízo Final. O barco sobreviveu, e seguiram-se mais 36. Dez homens, diante do inevitável, desafiaram a crueldade dos seus algozes, guardando para si o doloroso sabor da vitória final, a única que lhes era possível: saltaram borda fora, pondo fim à própria vida. Os que restavam a bordo imploraram misericórdia: que lhes fosse negada toda comida e bebida, tudo menos um fim como aquele — a tripulação negou. Quando o navio atracou na Jamaica, dos 440 africanos que haviam partido de Acra, 142 tinham sido mortos. Em tribunal, numa disputa entre os donos da nefasta empreitada e a companhia de seguros, alegou-se que a apólice não compensaria os escravocratas se os seres humanos que transportavam morressem de causas naturais. Uma única testemunha presente na viagem foi ouvida: invocou que, por questão de sobrevivência do navio — falta de água potável e de provisões para alimentar a tripulação e os africanos —, medidas tiveram de ser tomadas.

Admitir que foi homicídio o que fora cometido obrigaria à admissão de que as vítimas eram seres humanos, e não carga. Equiano foi um dos poucos que puseram a boca no trombone e chamou os bois pelos nomes — foi crime, sim! Embora ninguém tenha sido condenado, o interesse gerado pelo julgamento fez com que livros como A história da abolição do tráfico de escravos, de Thomas Clarkson, fossem escritos, inspirando Turner. Mesmo com todos os equívocos (mais atenção dada aos “sentimentos” dos perpetradores e menos aos das vítimas), ainda assim o movimento abolicionista da Inglaterra conquistou vitórias após o massacre do Zong. Embora hoje, séculos depois de o comércio de pessoas ter sido abolido — e, no plano dos direitos humanos, tenhamos evoluído bastante —, não consigo deixar de pensar nas palavras de Grada Kilomba, que afirmou a propósito da instalação O barco: “No meu trabalho interessa-me acima de tudo criar um senso de humanidade, num mundo que tão assustadoramente recalca, repete e normaliza a violência. Como artista, fascina-me criar uma poesia visual que interrompa esse imaginário colectivo”.

Ainda estamos em alto-mar?

Quem escreveu esse texto

Kalaf Epalanga

Escreveu Também os brancos sabem dançar (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #50 em agosto de 2021.