Coluna

Kalaf Epalanga

Um benguelense em Berlin

Ode aos sembas

O encanto de Angola está na forma como os angolanos fazem brotar diamantes com as palavras

01jun2020 | Edição #34 jun.2020

Ínício dos anos 1980, na ainda Angola dos camaradas, do “povo unido jamais será vencido”, das lojas do povo e seus cartões de abastecimento. Num tempo em que as calças boca de sino ainda imperavam e os homens, quando a ocasião assim exigia, vestiam um fato todo terreno próximo das camisas guayabera de quatro bolsos que os cubanos adoptaram como traje nacional, só que sem as pregas que as caracterizam. Foi naquele período, durante a segunda Guerra Fria, quando o Jornal de Angola e a Rádio Nacional gritavam o slogan “Ronald Reagan! Tira as mãos de Angola”, que descobri de forma desavisada que uma canção pode mudar vidas.

Não tenho memória de quando exactamente inventei a música. Tenho presente o momento em que inventei os galhos das árvores de frutos — a manga e o sape-sape. Quando inventei os muros e os telhados, palcos de intermináveis aventuras. Tenho ainda ao alcance da mão o momento em que inventei as folhas de papel — as primeiras a serem ocupadas pelos meus rabiscos indiscriminados, depois as que faziam companhia carregando estórias de Pepetela, Uanhenga Xitu e Manuel Rui. Minha relação com o papel está bem documentada. 

Já com a música foi diferente. Sempre que tento mapear e identificar a primeira canção, aquela que contaminou os meus ouvidos, deparo-me com uma nuvem sonora e tudo depois dela é vazio. E pelo tamanho dessa nuvem, estou deveras convencido de que foi a música que me inventou primeiro. E, até onde consigo ir, reconstruindo minuciosamente todo o percurso para trás, os discos dos irmãos Kafala representam esse início. Antes de o mundo ser mundo para mim, existiam os espirituais “Vissolela” e “Okudizola Kuetu”.

Ruy Mingas cantou como poucos a dor e a ânsia por liberdade do povo angolano

Depois veio o semba, na dikanza, no violão de Liceu Vieira Dias, na voz de Lourdes Van-Dúnem e Artur Nunes. No Conjunto N’gola Ritmos cantando “Muxima”, o hino espiritual do angolano. E depois veio Ruy Mingas, veio Bonga, veio Paulo Flores me dizer “O semba é meu choro dolente” e veio até Maria Bethânia me consolar num brasileirinho ternurento: “Ê semba ê, ê samba á/ Dor é o lugar mais fundo/ É o umbigo do mundo”. E os discos se tornaram, assim, no caminho que me levou até a literatura. Viriato da Cruz, Aimé Césaire, Zora Neale Hurston e todo o infinito que cada um me trouxe.

À ingrata pergunta “um disco que levaria para uma ilha deserta”, sem pestanejar, respondo: Monangambé e outras canções angolanas, do grande Ruy Mingas, o homem que deu voz às aspirações do povo angolano e cantou como poucos nossa dor e ânsia por liberdade. A edição é de 1977 e, dos cerca de quatrocentos vinis da minha colecção, é o LP que mais rotações teve na minha vitrola. É o único objecto, acima dos livros e dos quadros do Yonamine e do Vhils, que seria capaz de salvar de um incêndio se as circunstâncias o permitissem.

Novelos 

Os discos, assim como os livros, são como novelos: basta puxar o fio e deixar-se maravilhar com cada descoberta. Filipe Mukenga, por exemplo, me levou até Djavan, mas há também as descobertas que nascem das conversas sobre música. O incrível Nástio Mosquito, em um feliz reencontro que tivemos em Amesterdão, depois de lhe pedir notícias do nosso país, assobiou a melodia e os versos “Xé Mana Maria, ahh ha/ Xé Mana Maria, ahh ha/ Corre corre corre corre/ Larga o negócio/ Vai para casa/ Chama o Tio Joaquim para vir aqui/ É o Dadão/ É o Dadão/ Toda hora o Dadão/ Toda hora o Dadão…”. Fui correr para ouvir e fiquei encantando com o som das cordas de náilon acompanhando uma voz que, de tão nua, sincera e jovem, nos desarma. Carrega uma melancolia que me é familiar. As nuances daquela voz, a forma como oscila entre a dor e o humor, naquele instante em que o sorriso abandona os lábios. Conheço bem aquela sensação. A solidão que transporta mesmo estando rodeado de gente. A casa cheia de familiares que vieram de longe em visita por tempo indefinido.

Frontal e crua, a voz de Esio é a de quem conhece a miséria de perto, que ziguezagueia pelas ruas da cidade, evitando os buracos no asfalto e as poças de água parada (viveiros de mosquitos), de quem já sobreviveu ao paludismo e à cólera, de quem sabe que o esquema é mais do que o simples desenrasque — é um estilo de vida —, uma voz amiga da escuridão, pois não são poucos os serões em que a electricidade nos foge de casa. O autor de “Dadão” dedilha a guitarra e canta a história da infância de um luandense fazendo balançar, a cada mudança de acorde, poesia concreta e o perfume terra, tendo como cenário um bairro de periferia numa capital africana. Ele dedilha aquelas cordas como se lhes perguntasse o valor da vida e o peso da morte, acrescentando, quase sem querer, páginas da música popular angolana, que a geração do seu pai e músico Artur Adriano, do David Zé e dos Irmãos Kafala, deixou como herança.

Os versos de Esio, de tão inocentes e despidos de floreados, parece que nos são entregues durante uma conversa de quintal no Bairro Popular, no Sambizanga ou em qualquer outro musseque na Luanda, dos muxiluanda da Ilha do Cabo ou ainda na Luanda do lápis de José Luandino Vieira, ou ainda num qualquer quintal numa das províncias dessa Angola imensa, fértil e suculenta. Quem se viu nascido naquela poeira aponta-lhe os defeitos e reconhece-lhe os encantos, e estes não estão naquilo que o dinheiro poderá fazer acontecer. O encanto de Angola está na forma como os angolanos — aqueles para quem o eldorado não passa de uma miragem — fazem brotar diamantes com as palavras, com a sua própria e única narrativa. Triste, cómica e bela.

Quem escreveu esse texto

Kalaf Epalanga

Escreveu Também os brancos sabem dançar (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #34 jun.2020 em maio de 2020.