Kalaf Epalanga
Um benguelense em Berlin
O que faria Vanessa Nakate
Por que não aproveitarmos essa oportunidade para ouvir o continente com mais experiência em enfrentar pandemias?
01maio2020 | Edição #33 mai.2020Antes que o tédio nos vença a todos, eis aqui uma questão para um mundo pós-Covid-19: o que será necessário fazer para virarmos o jogo? Tornou-se claro durante o período de distanciamento social que quase todos os países impuseram aos seus cidadãos — tanto os que reclamam por mudanças a qualquer preço como os que estão eternamente à espera de um milagre qualquer, e até os cínicos que teimam em não entender que prosperidade económica e estabilidade política têm como inimigo maior a desigualdade social — que estão agora diante de uma oportunidade rara para acelerar a implementação dos 17 Objectivos de Desenvolvimento Sustentável, fixados na cimeira da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2015.
Na altura, baixou em Nova Iorque uma onda de optimismo contagiante semelhante àquela em que nós, comuns mortais, mergulhamos sempre que nos inscrevemos no ginásio nas primeiras semanas de janeiro depois de mais um réveillon. Vários líderes mundiais puxaram suas canetas Montblanc e assinaram uma agenda ambiciosa que prometia a erradicação da pobreza e um desenvolvimento económico, social e ambiental à escala global até 2030.
Antes dessa crise, sabíamos que as mudanças climáticas nos obrigariam a adoptar medidas radicais. Adolescentes como Greta Thunberg tiveram o altruísmo de vir para a rua nos relembrar disso, e os que achavam que ela não passava de uma pirralha e ainda desvalorizavam o que a garotada ambientalista dizia também sabiam que, em determinado momento, teriam que reagir, já que o valor do barril do petróleo do mercado indicava que o mundo tal como o conhecíamos tinha os dias contados. E eis que é declarada a pandemia, as sociedades mais industrializadas se veem forçadas a abrandar e os níveis de poluição registram melhorias significativas. De repente, os tais 17 Objectivos para 2030 deixaram de ser sonhos utópicos de intelectual comunista.
Queremos viver, (inserir aqui um palavrão a sua escolha)! Mas com a previsão de um mundo mais digitalizado, nos daremos finalmente a chance de viver? Os números, para quem investiu na área, são entusiasmantes. Em Itália o e-commerce cresceu 81% desde fevereiro, e no resto da Europa a tendência segue pelo mesmo caminho e já se assobia pelos cantos a vontade de seguir as pisadas da Estónia, que é considerado o país mais digitalizado do velho continente, com os seus cidadãos a poderem a votar, pagar impostos ou registar uma empresa a partir de seus computadores caseiros em poucos minutos. Com a Covid-19, a automação de processos de produção e redução de intervenção humana voltou a ser prioridade nas agendas dos grandes líderes empresariais para aumentar o distanciamento e minimizar a dependência de pessoas nos processos de produção.
Os objectivos de desenvolvimento sustentável da ONU para 2030 deixaram de ser sonhos utópicos de intelectual comunista
E nós do Hemisfério Sul, como é que ficamos? Os povos do Norte encaram a crise como uma oportunidade para revolucionar a indústria da comunicação. Para termos uma ideia, nas primeiras oito semanas do mundo em quarentena, o net worth do CEO e fundador da Zoom Video Communications, Eric S. Yuan, superou o do Sir Richard “Virgin” Branson (empresário britânico fundador do grupo Virgin), assim como de tantos donos de companhias aéreas. Muitas empresas aprenderam a operar remotamente, o que vem abrir importantes oportunidades de trabalho flexível e descentralizado, criando maior igualdade para pais e mães, cidadãos com deficiência, e, quem sabe (porque continuo sendo um optimista incorrigível), para outras minorias étnicas que se debatem com questões raciais e de mobilidade na soma dos muitos factores de exclusão, tanto no que diz respeito ao ensino quanto ao emprego. A Covid-19 representa também uma oportunidade para se reformar algumas práticas nos sistemas de saúde.
E isso leva-me de volta aos optimistas 17 Objectivos de Desenvolvimento Sustentável e ao relatório em que se destaca a necessidade de reforçar as intervenções nos países onde a malária ainda é endémica, bem como o financiamento às acções de luta contra o paludismo, que em 2018 atingiu os 2,7 bilhões de dólares, valor longe da cifra de 5 bilhões estimada como necessária pela Estratégia Técnica Mundial para o Paludismo 2016-2030. Na história da humanidade, estima-se que a malária tenha causado mais mortes do que qualquer outra doença. Só em Angola, anualmente saem para a rua cerca de 150 mil cortejos fúnebres de crianças, na sua maioria, vítimas de malária e subnutrição.
Experiência
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Diante da desgraça, não seria sensato ouvir quem convive com a morte de perto? Por que não aproveitarmos essa oportunidade para ouvir o continente com mais experiência em enfrentar pandemias? Só nas últimas décadas os países da África ocidental e central têm vindo a afinar práticas de isolamento e combate aos surtos de ebola, febre amarela, malária, doença do sono e esquistossomose. Embora os números de infectatos e vítimas do HIV em África continuem a ser uma vergonha. Muitos dos seus governos, com erros e falta de recursos que todos podemos sem muito esforço imaginar, têm relativamente bem ensaiadas medidas e procedimentos que devem ser postos em prática, como por exemplo a saída ou a chegada de cidadãos estrangeiros nos principais portos e aeroportos. Quem viaja por países africanos sabe bem o sufoco que é chegar a um posto de fronteira sem um cartão de vacinas actualizado.
‘[O homem] perde a saúde para juntar dinheiro, depois perde dinheiro para recuperar saúde’, escreve o Dalai-lama
E como sabemos que o tédio é um luxo capitalista, pergunto-me o que faria a ugandesa Vanessa Nakate, a activista fundadora dos grupos de ação climática Juventude para o Futuro de África e do Movimento Rise Up, diante da possibilidade de que, em um mundo pós-Covid-19, os países adoptem ainda mais restrições na circulação de pessoas nas suas fronteiras, o que obrigará sociedades a procurarem dentro de suas portas soluções para seus problemas, reestruturando assim o conceito de globalização. E o que pode isso representar para sociedades com menos chances de competir dentro dos moldes desse capitalismo desenfreado em nome do progresso? Mais oportunidades? Já vimos que esses conceitos são bonitos de ouvir em slogans de campanhas políticas, mas a realidade é que essa ladainha não passa de um mito.
Compramos a ideia de que somos livres, mas, em nome do progresso, escolhemos entregar sem pestanejar o que nos é mais valioso: saúde e liberdade. O que me leva até uma frase do Dalai-lama que até ontem parecia caber apenas nas mensagens de elevação espiritual que nossos amigos praticantes de ioga partilhavam nas redes sociais. Escreve o líder tibetano, quiçá rindo da nossa triste e sádica capacidade de nos autodestruirmos: “O que mais me surpreende na Humanidade é o Homem. Porque perde a saúde para juntar dinheiro, depois perde dinheiro para recuperar saúde. E porque pensa ansiosamente no futuro, esquece o presente, de tal forma que acaba por não viver nem o presente, nem o futuro. Vive como se nunca fosse morrer… e morre como se nunca tivesse vivido”.
Matéria publicada na edição impressa #33 mai.2020 em abril de 2020.
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