Coluna

Kalaf Epalanga

Um benguelense em Berlin

Nossos ludopédios

Em Angola, entrar em uma festa sem ser convidado é considerado praticamente um desporto nacional

23abr2021 | Edição #45

Estávamos a caminho da capital da Voivodia da Pomerânia Ocidental com uma missão: visitar o edifício da Filarmônica de Szczecin assinado pelos catalães Fabrizio Barozzi e Alberto Veiga. Não lembro quem lançou a ideia, mas todos naquele táxi havíamos concordado que não deixaríamos a Polônia sem antes pormos os olhos naquele objeto brilhante, translúcido, com o seu conjunto de telhados em zigue-zague sobre paralelepípedos verticais. 

O verdadeiro espetáculo acontece de noite, advertiu o motorista, num inglês monossilábico e um semblante de poucos amigos que mais parecia ter saído de um filme de ação dos anos 80. Óculos escuros postos ainda que do sol nem um raio se vislumbrasse. Vestido de preto dos pés à cabeça e complementando o figurino com um colete de couro. Ele tinha também o rádio ligado — Scorpions, aquela balada do assobio, nunca me lembro do titulo mas sei que me fartei de a ouvir, juntamente com Pink Floyd, Dire Straits e outras bandas da altura na Rádio Morena. 

De perfil e sem olhar para o estômago inflamado que exibia, diria que estávamos a ser conduzidos por Ivan Drago, o personagem interpretado por Dolph Lundgren e que defrontou o Rocky Balboa de Sylvester Stallone na peleja épica que colocou o Rocky 4 no topo da lista dos filmes favoritos de todos os ndengues do meu bairro. E que marcou para mim o acontecimento extraordinário que foi a chegada do vhs à minha rua. Lembro-me de que a sala vibrava como as bancadas de um estádio de futebol num jogo entre equipas rivais. Cada sopapo era acompanhado por “uis” e “ais” de uma claque eufórica, como se a frase de Drago, “If he dies, he dies” (Se ele morrer, morreu), não fosse ficção, e todos ali tivessem apostado dinheiro num dos pugilistas. 

Sabíamos que o lutador russo, visivelmente superior a Rocky Balboa, iria perder, não por se tratar de eua vs urss feito nos estúdios de Hollywood, mas porque o personagem  do  sr. Stallone carregava uma motivação extra. Vingar a morte de Apollo Creed, interpretado pelo ator afro-americano Carl Weathers. Só por isso traímos nossos aliados soviéticos e apostamos todo o nosso dinheiro imaginário no gringo. Éramos uns melodramáticos e apostar era nosso passatempo favorito, que carregamos até a puberdade, quando as peladas na calçada da Loja do Povo foram trocadas pelas matinês dançantes.

‘Patar’ é uma actividade que requer método, aprumo visual, nervos de aço e uma confiança inabalável

Naquelas tardes de sábado, sempre que o dj soltava um slow, lá íamos nós, num reboliço danado, pedir às moças presentes que nos concedessem a honra de uma dança. Das canções da altura, duas tiveram entrada automática na playlist de músicas que desejo que sejam tocadas no meu funeral. A primeira delas é a bachata cor-de-rosa “Burbujas de amor”, do dominicano Juan Luis Guerra: 

Quisiera ser un pez
para tocar mi nariz en tu pecera
y hacer burbujas de amor por donde quiera
oh oh oh, passar la noche en vela
mojado en ti
un pez

Os versos fizeram palpitar nossos imberbes corações, obrigando-nos a prestar atenção às letras de muitas das canções populares da época. No Brasil, o poeta e um dos fundadores do neoconcretismo Ferreira Gullar também lhe reconheceu o gênio e adaptou para o português as “Borbulhas de amor”, a pedido do cantor Fagner. 

O segundo tema, que todos nós considerávamos a apoteose da festa, era o clássico “Pense em mim”, composto por dois afro-brasileiros, Mário Soares e Douglas Maio, além de José Ribeiro — e claro, catapultado para a estratosfera pela dupla sertaneja Leandro e Leonardo. Assim que ouvíamos o break de bateria, nos colocávamos em sentido e, antes que os dezeseis compassos do solo de saxofone terminassem, vasculhávamos os quatro cantos da discoteca em busca da figura que tínhamos debaixo de olho. Aquele era o momento pelo qual nós, os tímidos, esperávamos sofregamente, pois, numa falta de imaginação que só é perdoada aos adolescentes, podíamos finalmente desafinar o refrão no ouvido da pessoa que desejávamos: 

Pense em mim
chore por mim
liga pra mim
não, não liga pra ele
não chore por ele

Patos de festa

Aquela era a Benguela dos finais dos anos 80. A época de ouro dos patos de festa, nome que os angolanos dão à arte imemorável de entrar numa festa sem ser convidado. Uma actividade que requer método, aprumo visual, nervos de aço e uma confiança inabalável. Resumindo, é preciso ter o talento de um agente secreto que habita os livros de Ian Fleming. Jogo de cintura e um fato de bom corte podem abrir qualquer porta. Em Benguela, assim como no resto do país, “patar” é considerado praticamente um desporto nacional. Uma boda sem pelo menos um pato carismático que vira o centro das atenções não é festa que se preze. 

Lembro que celebrávamos com bastante entusiasmo os relatos daqueles que tinham conseguido ser o pato das festas mais badaladas da cidade, tal como o casamento da filha de um qualquer general, no qual, quase como magia, havia conseguido não só passar a segurança como também dar um passo de dança com a noiva, a mãe desta e todas as damas de honor. Não que essas narrações não fossem fruto da imaginação de quem as contava — dado o exagero de algumas situações que o alegado pato vivera, penso agora que sim —, mas ninguém se importava.

Na literatura, Ondjaki capturou com mestria a década em que cresci nos livros, com Bom dia, camaradas, Os da minha rua e AvóDezanove e o segredo do soviético. Os anos em que a música, os livros e o cinema nas pausas das nossas peladas na calçada da Loja do Povo eram dissecados mais exaustivamente que nas críticas do Caderno B. Um filme do tempo do vhs que fez furor na minha rua, não pela sua qualidade, mas sim por se tratar da obra que nos fez desconfiar do cinema propaganda, foi Escorpião vermelho, com Dolph Lundgren mais uma vez interpretando um personagem soviético. O filme foi escrito e produzido por Jack Abramoff, um lobista americano que, nos idos de 1985, no auge da Guerra Fria, se envolveu com algumas figuras próximas a Ronald Reagan e ao Partido Republicano e organizou o evento “Jamboree in Jamba”, também conhecido como Internacional Democrata, conferência que juntou no bastião da Unita grupos anticomunistas apoiados pelo Ocidente. Adolfo Calero, da Fuerza Democrática Nicaraguense, e o líder mujahideen Abdul Rahim Wardak foram alguns dos presentes.

Segundo o próprio Abramoff, aquele encontro na Jamba deu origem a Escorpião vermelho. Para quem não estiver lembrado, o enredo gira à volta de Nikolai, um oficial soviético enviado para um país fictício africano com o objectivo de se infiltrar nas forças rebeldes que se opõem à ocupação soviética/cubana do país e assassinar o seu líder, uma figura inspirada em Jonas Savimbi. A coisa, entretanto, como seria de esperar, dá para o torto e Nikolai é brutalmente torturado por seus superiores soviéticos, que não admitem sua falha na missão. Ele foge para o deserto, onde quase morre picado por um escorpião e é salvo por um velho bosquímano. Os dois criam laços de amizade, apesar das diferenças culturais. Nikolai, que aprende a arte da sobrevivência no deserto, acaba por se aperceber das atrocidades cometidas contra o povo indefeso e, no típico enredo do white savior, junta-se às forças rebeldes para destruir a base soviética. Fim.

Quem escreveu esse texto

Kalaf Epalanga

Escreveu Também os brancos sabem dançar (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #45 em abril de 2021.