Djaimilia Pereira de Almeida
Onde queremos viver
Um livro bom
Colecção de fotografias do inglês Chris Killip narra com amor verdadeiro a situação numa praia de carvão
14jul2022 | Edição #60É preciso respirar fundo várias vezes enquanto se folheia Seacoal, do fotógrafo britânico Chris Killip (1946- 2020), publicado em 2011, apesar de nada nele ferir qualquer susceptibilidade. Fazia muito tempo que um livro não me impressionava tanto. Poucas vezes testemunhei num livro tamanha nobreza. As pessoas são mostradas com uma tal honradez. Killip é um com eles, tornou-se um deles, os apanhadores de carvão da praia de Lynemouth, Northumberland, Inglaterra.
Li depois o obituário de Chris Killip no Guardian. Morreu nos Estados Unidos da América. Casou com uma funcionária da Universidade Harvard, onde foi primeiro leitor visitante, desde 1991, e, depois, professor emérito e director do Departamento de Estudos Visuais e Ambientais.
“Killip tentou fotografar pela primeira vez Seacoal Beach em Lynemouth, Northumberland, Inglaterra, em 1976, mas levou seis anos a ganhar a confiança das pessoas que lá trabalhavam. Vivendo, dentro e fora, numa caravana no campo de Seacoal em Lynemouth, de 1982 a 1984, Killip mergulhou nas suas lutas pela sobrevivência”, escreve a editora Steidl, que publicou Seacoal em 2011.
Escreveu Killip: “Quando vi a praia em Lynemouth pela primeira vez, em janeiro de 1976, reconheci a mina de carvão e a indústria acima dela, mas nada mais. A praia por baixo de mim estava cheia de actividade com cavalos e carroças encostadas ao mar. Os homens estavam de pé no mar junto às carroças, usando pequenas redes de arame presas a postes para pescar o carvão da água que se encontrava debaixo delas. O lugar confundia o tempo; aqui a Idade Média e o século 20 entrelaçavam-se”.
Tamanha honradez no olhar e respeito por quem se fotografa. Quanto tempo é preciso para conseguir isso? Quanta nobreza de carácter — e como ela se engendra, se é que se engendra? Chris Killip põe-nos em xeque. Seacoal é um livro virtuoso.
Doutro tempo
No texto que o inicia, Killip conta como foi abordar os apanhadores de carvão —e como finalmente, após anos, num dia em que o tinham ameaçado de morte — duvidavam então que fosse fotógrafo e pensavam que trabalhava para a segurança social —, foi até ao bar onde se encontravam e um homem entre eles, um estranho que conhecera uma vez noutra jornada fotográfica, foi quem o salvou e lhe deu salvo-conduto para fotografar a praia. Killip viveria numa caravana perto dos apanhadores de carvão, durante catorze meses, e faria essas fotografias.
Em Seacoal, como o próprio afirmou, a Idade Média entrelaça-se com o século 20. Há automóveis na praia e caravanas e carroças com cavalos, com chaminés ao fundo, da indústria. Neva, e os cavalos e as crianças estão no gelo, os dedos e os cabelos sujos de carvão. Algumas imagens parecem ter sido feitas quando Killip montava um cavalo. As crianças estão sujas e alegres. Têm cachorrinhos rafeiros. Os homens, em casaco de fazenda e camisolões de lã, são patriarcas honestos, saídos doutro tempo. As adolescentes parecem pressentir que há outra vida e, ao mesmo tempo, não querem senão ao mundo que conhecem.
Outras colunas de
Djaimilia Pereira de Almeida
O que mais espanta é, como disse, a virtude no olhar de Chris Killip. Talvez hoje em dia falar nessa virtude pareça uma ingenuidade, uma falta de noção. Não há, porém, outro meio de o dizer. Existem muitas formas de retratar a luta pela sobrevivência dos nossos semelhantes. Aqui, a situação dos apanhadores de carvão é capturada de um modo que não a sublima ou a romantiza. Killip é absolutamente preciso e contido. Não está na praia de carvão de Lynemouth para explorar os apanhadores e as suas famílias. Fez-se um deles e, não exagero, ama-os na medida em que são seus vizinhos.
Com frequência, aliena-se à partida qualquer modo de abordar a pobreza, no domínio da arte. Muitas vezes, porém, as queixas acerca do que seriam abordagens sublimadas e autoindulgentes só escondem a vontade de arredar dos nossos olhos a pobreza. Não digo que todos os modos de a mostrar sejam igualmente bem-intencionados, ou nobres. Só me parece que vai existindo menos espaço para procurar o meio de conduzir a nossa vista na direcção de quem não está à vista por um preconceito que nada tem que ver com um escrúpulo na exploração alheia, mas reside apenas num modo encoberto de disfarçar o facto de que não nos apetece sequer ver (ou chegar perto) o modo de vida de tantos de nós. O escrúpulo cínico a respeito da exploração esconde, então, a vontade de manter à distância, de afastar da vista. O que escolhemos ver e não ver revela-nos a nós e a quem somos. O modo como mostramos os outros mostra-nos a nós. A honradez que se testemunha em Seacoal, nos apanhadores de carvão da praia de Lynemouth, é a honradez de Chris Killip.
O que escolhemos ver e não ver revela-nos a nós e a quem somos. O modo como mostramos os outros mostra-nos a nós
Seacoal não documenta a pobreza ou qualquer fenómeno social. Narra com amor verdadeiro a situação numa praia de carvão do norte da Inglaterra, nos anos 80 do século 20. Nunca tinha visto um livro assim. Seacoal, de Chris Killip, não é apenas uma obra-prima, um bom — enorme — livro. É um livro bom.
Matéria publicada na edição impressa #60 em julho de 2022.