Tema livre,
Centenários anónimos
O Outono repete o modo como me vou esquecendo dos mortos, à medida que os dias encurtam
07out2022 | Edição #63Não sei se há estação mais nefasta do que o Outono, mas as estações são o que elas fizeram connosco. Por estes dias, o meu avô faria perto de cem anos. Talvez não valham de nada os centenários dos cidadãos anónimos, comparados com os das pessoas célebres. Os sobreviventes lembram-se, quem sabe um deles faz um brinde ou vai ao cemitério, trocam-se algumas palavras.
O Outono é a estação em que a natureza se parece mais com o que a passagem do tempo faz à lembrança daqueles que amei. No começo, estão diante de mim, quase os vejo, ainda são nítidas as mãos e as caras. Vão-se desbotando, com a passagem dos anos, primeiro ainda fantasmas, depois nem isso, quero lembrar-me de como eram. Não consigo.
Joe Biden diz que o apocalipse está à espreita. Leio nos jornais, o apocalipse já não assusta ninguém
Uma amiga partilha o conselho que lhe deram: “Faz da tua cabeça uma boa companhia, porque terás de viver com ela a vida inteira”. Em que curso me devo inscrever para aprender a fazer isto? Então, encho os dedos de factos e episódios: o facto de que o polinizador da dama-da-noite é o morcego, a romena rica que me disse que a Roménia era a terra dos vampiros, o rapaz que traz a fotografia dos avós, a preto e branco, presa na capa do telemóvel, a brasileira que não consegue abrir uma conta bancária em Lisboa (nem alugar um quarto), os indianos na fila de espera do consultório, a fazerem stories no Instagram, consigo de tronco nu a exibir os músculos, a padeira que estaciona a carrinha na praceta e vende queijo, pão e bolos aos miúdos que saem da escola primária, técnicas para limpar pratas e para pintar com pastel.
Joe Biden diz que o apocalipse está à espreita. Leio nos jornais, o apocalipse já não assusta ninguém. O Outono repete o modo como me vou esquecendo dos mortos, à medida que os dias encurtam.
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Este mês, levaram-me a um lugar no termo da cidade. Disseram-me que era o fim do mundo, que era preciso atravessar um bairro muito perigoso. Uma vez nesse lugar, “a cidade termina, é tudo baldio”. Durante dias, antes do passeio, imaginei o lugar. Era um edifício no meio de um deserto, na torreira do sol, num extenso planalto.
Arranjei uma máquina de escrever e escrevo uma página. Não estou habituada a ter de ter as frases na cabeça ou a precisar de memorizar a frase anterior e a frase seguinte. Muito depressa, vejo que escrevo à máquina como uma criança de seis anos, apesar de escrever todos os dias e de os meus dedos bailarem pelo teclado com muita experiência. A máquina de escrever obriga-me a projectar as palavras no ar, como se projectava nas aulas de geometria descritiva. Muito rapidamente, basta uma pequena alteração, e percebo que não sei fazer aquilo que faço todos os dias.
Rabisco listas de coisas que gostava de mostrar ao meu pai morto e de experimentar com ele: caril verde, chocolate de framboesa. Numa livraria, decido escolher um livro pela capa e, sem saber a língua, compro uma antologia de histórias sobre pais. Sinto-o guiar-me os passos, os caminhos. Como nos nossos passeios infantis, ele anda a meu lado pela rua e tira-me o medo a cada momento.
Também as pessoas célebres, cujos centenários se comemoram, são pessoas anónimas para aqueles que as amaram.
À chegada ao fim do mundo, são catorze horas de um dia luminoso. Uma extensa encosta de oliveiras e sobreiros refresca o edifício aonde nos dirigimos. Camuflado entre as árvores, um casarão branco. O campo é muito limpo e verde. O lugar irradia vida. Naqueles trilhos pode correr-se à vontade, dar primeiros beijos, esconder segredos. Pobre de imaginação, que não calculei que no fim haveria um jardim, como houve no começo.
Matéria publicada na edição impressa #63 em outubro de 2022.