Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

Na Europa

A homogeneidade cromática e cultural das pessoas a quem perguntaram sobre o futuro do continente foi tão gritante quanto previsível

30jun2022 | Edição #59

Era a viagem aos Alpes de um casal de portugueses, nos anos 40 do século passado. As fotografias foram reveladas em Lisboa, nos Estúdios Carrasco, na Rua Nova de Almada. Nunca pensei então que escreveria em Zurique e pisaria esta terra. Em tudo o que escrevi sobre esse casal, pairava a possibilidade de viajar através da sua viagem por lugares que nunca veria ao vivo. Estive ali, não na montanha, mas num cantão do país onde nasceu Jean-Jacques Rousseau, um dos meus fantasmas predilectos. Conjecturei uma vez sobre como talvez Rousseau não me aceitasse, miúda negra, à sua mesa. Que sei eu, afinal, diante dos suíços sorridentes com que me cruzo, quem sabe porque sou essa miúda, miúda assim? Mas caminho, sorvo o vento, pensando que Rousseau, Freud, Joyce, Lenine caminharam nestas ruas e ouviram o trinado dos mesmos rolieiros-europeus, de penugem azul e ocre.

“Quanto a mim, quando desejei aprender, foi para saber e não para ensinar; sempre pensei que antes de se instruir os outros era necessário começar por saber o suficiente para si próprio, e de todos os estudos que na minha vida tentei fazer entre os homens, não há nenhum que não tivesse podido fazer numa ilha deserta para onde tivesse sido desterrado para o resto dos meus dias.”

Jean-Jacques Rousseau. Os devaneios do caminhante solitário. Trad. Henrique de Barros (Cotovia, 1989).

Nunca me senti tão na Europa e, ao meu país, tão longe, tão outra coisa, apesar da língua portuguesa ouvida nas ruas, da carrinha de um senhor Mário e respectiva bandeira verde e encarnada, estacionada junto a um prédio em obras na rua de onde escrevo. Os media portugueses comemoraram o Dia da Europa. A homogeneidade cromática e cultural das pessoas a quem perguntaram sobre o futuro do continente foi tão gritante quanto previsível. À mesa, constato que nada do que imaginei que encontraria na Suíça é exactamente como imaginei. A Europa talvez fosse um sonho que não me lembro de ter sonhado.

Estações

A manhã nebulenta cheira a café e a chuva. A luz que entra nas janelas é branca e baça. Alguns dias de Primavera são assim. O céu foi tapado com rama de algodão e não há brilhos e contrastes nos galhos da árvore. Molhados, escurecidos pela água, os ramos dançam ao vento que os balança, em compasso ternário. Gotejam pingos de água dos capilares em cujas pontas se avistam já os botões dos quais rebentarão as folhas dentro de um mês. Nunca mais é Primavera em Zurique, ainda que já seja Verão. Pareço diante de um ser mudo de dez braços erguidos, a árvore e os seus ramos maiores. Abrindo a janela, soam os ramos recebendo e libertando a chuva. A estrada está da cor dos galhos, ébano brilhante. Ao fundo das nuvens, além da montanha, o céu permanece azul como estava sobre a névoa densa e cinza acima da cidade, antes de o avião que me trouxe aterrar. Lá em cima, era o dia de Verão mais infinito, ouro e rosa, cinco da tarde. Alguns pés abaixo, a nave penetrou no anel de chumbo e descobriu Zurique à beira da noite, gelada e escura.

Estaremos anestesiados a tal ponto que só reagimos à brutalidade? Será que já só sentimos se as coisas forem brutais?

Os sonhos fertilizam o Inverno. O sino tange ao longe, agora baixo. Uma placidez sem sombras antecipa a Primavera. Como será ver despontar as flores do gelo? Imagino a folhagem da árvore antes de a testemunhar. Vislumbro um Verão inteiro à janela. Vou dos galhos nus ao estertor dos pássaros, do singular casal de rolas que me perseguiu desde Lisboa à companhia das aves avistadas pelo artista Albrecht Dürer, cuja melancolia alada escrevia com um galgo aos pés, antepassado do meu. Pode alguém escrever sem um cão ou um leão aos pés?

Vi uma explicação gráfica do funcionamento de uma bomba termobárica. O lançador incendiava-se ao expelir a bomba, que incendiava tudo à sua volta. Lembrou-me o comentário de A., jovem amigo autista: “Um filme para ser bom não tem de fazer doer”. Estaremos anestesiados a tal ponto que só reagimos à brutalidade? Será que já só sentimos se as coisas forem brutais?

Há semanas que uma visão me visita. Vejo uma calçada de pedras negras num beco escuro. Alguma coisa me aguarda no fim do beco aonde as pedras me dirigem, mas não sei o que é. Não consigo ver. Não escrevas acordada. Escreve a sonhar.

Nota
Tema Livre é a coluna quinzenal de Djaimilia Pereira de Almeida, acompanhada com imagens de Humberto Brito

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #59 em junho de 2022.