Bianca Tavolari
As cidades e as coisas
Democracia como forma de vida
Como foi a posse de Gabriel Boric, que de líder estudantil se tornou o novo presidente do Chile
24mar2022 | Edição #56Cerimônias de posse de presidentes da República são marcadas por ritos do início ao fim. São momentos em que o poder se materializa justamente por sua transmissão, repleta de símbolos que corporificam a alternância entre os eleitos e, especialmente, visões de futuro de um país. Evocam o signo da tradição, de uma pompa e circunstância que está na corda bamba entre, por um lado, a sacralização de uma liturgia que se afirma por se repetir periodicamente e o cheiro de guardado de uma roupa que ficou por tempo demais no armário da vida pública nacional.
No dia 11 de março, uma sexta-feira, Gabriel Boric Font tomou posse como presidente do Chile, depois de ter sua vitória eleitoral consagrada no dia 19 de dezembro do ano passado. O primeiro turno havia dado vantagem a José Antonio Kast, do Partido Republicano do Chile, fundado em 2019 pelo próprio Kast, como caminho institucional para vocalizar uma posição declaradamente pinochetista e ditatorial. Boric havia ficado em segundo lugar, com 25,83% dos votos – só 2,08% atrás do candidato de extrema direita. Seu partido, Convergencia Social, foi fundado apenas um ano antes do partido de Kast, em 2018, e integra uma coalizão política denominada Apruebo Dignidad, que reúne diferentes correntes da novíssima esquerda chilena. O segundo turno foi marcado pela virada: Boric superou a diferença em relação a Kast, terminando com 55,87% dos votos contra 44,13% do adversário.
Essa eleição é marcada pelo registro do novo. Pela primeira vez, os dois candidatos mais votados não eram da centro-esquerda tradicional, organizada por muitos anos pela Concertación, e da direita tradicional – tivemos uma esquerda nova e jovem contra a ultradireita de inspiração fascista. Pela primeira vez, nenhum dos partidos tradicionais estava disputando diretamente uma eleição presidencial, o que embaralhou análises e cenários. Pela primeira vez havia um candidato tão jovem: com apenas 35 anos no momento da campanha e da eleição, Gabriel Boric não impressionava somente por sua pouca idade, mas por ter sua formação política atrelada aos protestos estudantis que marcaram o Chile nos anos recentes. Eleito liderança da FECh, a Federação dos Estudantes da Universidade do Chile em 2011, Boric se lançou como porta-voz de uma insatisfação pulsante na sociedade civil. No Chile, ensino público não significa ensino gratuito e a juventude universitária chilena começa sua vida adulta com dívidas que marcam a desigualdade gritante de um país cujas principais decisões políticas estão atreladas a uma Constituição da época da ditadura militar.
Boric foi eleito deputado federal em 2013, representando sua região de Magallanes e a Antártica Chilena, muito pequena em termos populacionais e muito ao sul – sua origem austral é estampada de forma permanente em suas tatuagens visíveis no braço. Não só era a primeira vez que o Chile via um candidato a presidente tatuado, mas que também vinha de fora da Região Metropolitana de Santiago, o centro da política institucional. E era também a primeira vez que havia um candidato tão vinculado aos protestos sociais. Boric foi uma das lideranças do que ficou conhecido como estallido social, uma série de protestos que começou no dia 18 de outubro de 2019 e terminou com o plebiscito, convocado por Sebastián Piñera – então presidente em exercício –, para uma nova Assembleia Nacional Constituinte. Com o mote inicial de “no son 30 pesos, son 30 años”, o estopim do aumento da passagem do transporte público vocalizou a indignação de décadas de políticas de austeridade e de pouca redistribuição.
As primeiras vezes não vêm sem custo ou reação. A mais contundente delas aconteceu no dia do segundo turno, quando donos das empresas de ônibus decidiram manter grande parte de suas frotas paradas para que as pessoas mais pobres não conseguissem chegar a seus locais de votação. Na Região Metropolitana de Santiago, os colégios eleitorais costumam ficar distantes dos endereços residenciais, o que obriga a percorrer caminhos longos para exercer o direito ao voto. As pesquisas indicavam que Boric tinha chances de virar, especialmente entre um setor que foi decisivo: as mulheres. A rasteira na democracia no dia da eleição mostra como direitos sociais podem impedir o exercício de direitos políticos fundamentais e como as regras do jogo importam pouco para quem sempre está acostumado a ganhar.
E aqui temos mais uma primeira vez na história chilena. Como o voto não é obrigatório, convencer as pessoas a irem às urnas é o primeiro passo de qualquer campanha de mobilização. Com mais de 8 milhões de votos gerais no segundo turno, esta foi a eleição presidencial com maior comparecimento, mesmo com todas as tentativas de boicote.
A escolha do ministério foi um recado e tanto não só para o Chile, como para todas as democracias. Com maioria expressiva de mulheres, tem Maya Fernández Allende como ministra da Defesa
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Bianca Tavolari
Para além de todas essas inaugurações, os ventos de ar fresco também vinham das propostas concretas de Boric para o país. A escolha do ministério foi um recado e tanto não só para o Chile, como para todas as democracias. Com maioria expressiva de mulheres, com Izkia Siches como ministra do Interior, com Camila Vallejo como Secretária Geral de Governo e, talvez a mensagem mais contundente, com Maya Fernández Allende como ministra da Defesa. Maya não tinha nem dois anos completos quando sua mãe saiu junto com uma comitiva pela porta lateral do Palácio de La Moneda, no número 80 da rua Morandé, no dia 11 de setembro de 1973. Seu avô sairia do palácio morto pela mesma porta e o Chile nunca mais seria o mesmo. Ter a neta de Allende como chefe das Forças Armadas é mais do que simbólico, é uma virada substantiva em termos de projeto de país.
Quebra de decoro
Depois do discurso de vitória de Boric, todos os holofotes estavam voltados para a posse do dia 11 de março – e é preciso mencionar a parca cobertura da imprensa brasileira de um evento tão relevante, o que pode nos dar indícios, entre outros fatores, de quão pouco latino-americanos nos compreendemos por aqui.
No Chile, a cerimônia de cambio de mando começa com uma sessão legislativa extraordinária no edifício do Congresso Nacional, que fica em Valparaíso – localizado antes em Santiago, a capital, foi transferido em 1987 ainda na ditadura militar. Segundo o rito, metade dos convidados para a sessão são do presidente eleito, a outra metade do presidente que deixa o cargo. Alguns minutos depois do meio-dia, Sebastián Piñera entra no salão do Congresso acompanhado de sua esposa, em um caminho com tapete vermelho que o leva até uma mesa em que estão sentados os presidentes do Senado e da Câmara, bem como os secretários das duas câmaras legislativas, com representantes das Forças Armadas fardados de pé, atrás. Piñera deixava seu segundo mandato presidencial com baixa aprovação depois de ter um processo de impeachment aprovado em razão de contas em paraísos fiscais descobertas pelos Pandora Papers. Piñera é um dos nove ultrarricos do Chile, com fortuna avaliada em US$ 2,9 bilhões pela revista Forbes.
Boric é buscado por secretários do Senado, que o convidam para ser incorporado à sessão. E, assim que pisa no tapete vermelho, os comentários dos âncoras de jornalismo chileno começam a qualificar as novidades como “quebra de decoro”. Em primeiro lugar, chama atenção que Boric estava de terno e camisa, mas sem gravata. Além disso, era seguido por Manahi Pakarati, sua chefe de protocolo, que trajava as vestimentas Rapa Nui, típicas dos povos originários da Ilha de Páscoa.
Boric entra no salão com uma intimidade que é refletida em seu gestual, muito bem pensado e nada artificial. Chega com a mão direita no coração. O braço esquerdo é levantado, com a mão aberta, em aceno a todos que aplaudem efusivamente sua chegada. Bate no coração com a mão fechada, em dois pequenos socos, como se estivesse mais do que familiarizado com o nosso tão brasileiro “tamo junto”. Ao chegar à mesa, cumprimenta os funcionários e os representantes das Forças Armadas que estão lá de prontidão. Em qualquer espaço, cumprimenta funcionários e funcionárias. E isso também soa como mais um vento novo e uma quebra de decoro, um presidente que cumprimenta trabalhadores e crianças, que faz questão de marcar o reconhecimento e de enfatizar que a hierarquia é o menos importante.
No Chile, cada presidente tem sua própria faixa presidencial. Não há, como no Brasil, uma transmissão de faixa entre presidentes. Piñera entrega sua faixa ao presidente do Senado. Uma nova faixa é destinada a Boric, desta vez confeccionada especialmente por mulheres do Sindicato Revolucionário Têxtil. O que marca efetivamente a transmissão de poder é a piocha de O’Higgins, uma medalha-broche em formato de estrela que vai pendurada na faixa. Esta estrela passa de presidente a presidente, mas não é a original, roubada por Pinochet quando deixou o poder depois da vitória do “não” no plebiscito que marcou a dura democratização chilena – e eternizado no filme No, de Pablo Larraín.
Gabriel Boric mostrou para todos e todas que quiseram ver que não se trata de quebra de protocolo ou de renúncia aos ritos.
Antes de vestir sua própria faixa e de jurar à Constituição, Boric cumprimenta Piñera. E ao terminar de fazê-lo dá uma voltinha por trás do ex-presidente. Um gesto aparentemente tão banal ganha um simbolismo enorme. Essa não é qualquer transmissão de poder. Em seu primeiro mandato, Piñera havia se recusado a receber o jovem líder estudantil Gabriel Boric em 2011. Agora era obrigado a reconhecê-lo como presidente sucessor. Não é pouco. As voltas que o mundo dá apresentadas silenciosamente como um passo de dança, à frente de todos. E um sinal de que Boric está em seu próprio elemento, dança com as formalidades institucionais, domina o palco e a cena.
Demora oito minutos para atravessar o tapete vermelho de volta, depois de jurar à Constituição e cantar o hino. O próprio juramento seria caracterizado como mais uma quebra de decoro. Em vez de dizer simplesmente “juro”, declara: “Ante el pueblo y los pueblos de Chile, sí prometo”. Os muitos minutos são marcados por abraços, cumprimentos, selfies – o que a imprensa chilena classificou como a primeira posse millennial. Além de diversas autoridades, ministros e ministras, entre os convidados estavam Gustavo Gatica e a senadora Fabiola Campillai, ambos que perderam a visão com tiros de balas de borracha e gás lacrimogênio utilizados pela polícia nos protestos de 2019. O Ford Galaxie que leva os presidentes de Valparaíso a Cerro Castillo em Viña del Mar, para depois ir a La Moneda em Santiago, é conduzido pela primeira vez por uma mulher, a suboficial Lorena Cid.
“Boric está acostumado a romper as regras”, “o protocolo não será seu forte”, dizem analistas. Gabriel Boric mostrou para todos e todas que quiseram ver que não se trata de quebra de protocolo ou de renúncia aos ritos. A mensagem é clara: este é o novo protocolo. E ele inclui uma maioria de mulheres ministras e mulheres em posições que antes não eram ocupadas por elas, inclui respeito às instituições com a intimidade de quem vem da luta social dos protestos que mudaram o país, além de mostrar que para o novo país as hierarquias não são decisivas para considerar alguém como sujeito, os povos originários são protagonistas, as autoridades são acessíveis ao povo e a pompa assume características cotidianas.
A nova liturgia é ter a democracia como uma forma de vida. Não é aquele terno que se tira do armário apenas para eventos especiais, mas uma roupa que é confortável a Gabriel Boric em todos os momentos, sem encenação de um ritual tradicional datado. Os símbolos desta posse indicam justamente isso: democracia não é apenas uma forma de governo, não é algo que somente se exerce como parte de um cargo público. Como forma de vida, permeia todas as decisões, públicas e privadas, orienta toda e qualquer ação. E este é o signo do novo: um presidente, ministros e ministras que entendem que a democracia atravessa as nossas vidas, em todos os momentos, com todos os erros e acertos.
*****
Assisti à cerimônia de cambio de mando pela televisão, em um bar perto do Cerro Santa Lucía, em Santiago. Assisti com os olhos marejados, como não poderia deixar de ser. Abraçada no meu tio Antonio, que comentava comigo e com a Maíra cada símbolo e passo dado. A história do Chile se entrelaça com a história da minha família. Meu avô, Antonio Elías Tavolari, foi deputado pelo Partido Socialista entre 1969 e 1973. Era muito próximo de Salvador Allende, foi torturado pela ditadura militar. Minha avó, Lidia Margarita Cristinich Iratchet, foi uma mulher que lutou incansavelmente por mudanças sociais e integrou o Comité Independiente de Mujeres Allendistas. Estar ali era como estar no lugar correto, o lugar em que se podia sentir esse vento fresco de mudança. Entramos no primeiro bar que tinha uma televisão grande. E a força dos símbolos se fez presente mais uma vez. Porque o bar se chamava Utopia, esse lugar que projeta nosso caminho para frente.
Matéria publicada na edição impressa #56 em fevereiro de 2022.
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