Juliana Borges
Perspectiva amefricana
Visão anticapitalista da resistência negra
Clóvis Moura resgata quilombagem e movimentos de revolta como espaços de construção política, social e econômica alternativos à ordem colonial
01nov2024 • Atualizado em: 31out2024 | Edição #87 novEm História do negro brasileiro, Clóvis Moura evidencia a participação política constante e decisiva da população negra em todos os grandes momentos históricos do Brasil, desde a Colônia até a República. O autor destaca que pessoas negras, longe de serem vítimas passivas das estruturas de poder, foram protagonistas e partícipes de revoltas e movimentos sociais que moldaram o curso da trajetória brasileira. Durante a expulsão dos holandeses, nas revoltas do período colonial, como a Revolta dos Alfaiates e a Inconfidência Mineira, e em conflitos marcantes como a Revolução Farroupilha e a Cabanagem, a adesão e participação negra foram fundamentais para a formação das lutas populares.
Moura enfatiza também a Revolta da Chibata, liderada por João Cândido em 1910, como marco da inclusão da pauta racial nas lutas sociais brasileiras. Nesse último levante, percebemos uma articulação entre as reivindicações por justiça social e o combate à opressão racial, um dinamismo e intersecção que não podem ser dispensados para pensar e promover lutas no Brasil — ainda que sempre haja quem tente colocar em conflito a relação de lutas por redistribuição e lutas por reconhecimento, que são complementares. E pessoas negras sabem disso há muito tempo.
Ao posicionar como marco a Revolta da Chibata, Moura destaca o negro como sujeito ativo na busca por mudanças estruturais no país e desmantela ideias de que a participação política negra pela liberdade e direitos sociais teria sido marginal, quando foi central. O pensador não deixa de lado as contradições e diferenças no interior das lutas negras que tinham representantes seja do lado do status quo, seja da resistência — e as consequências dessas escolhas. O fato importante a ser destacado é a agência e a participação de pessoas negras como sujeitas da ação política. É um movimento discursivo e histórico a ser celebrado, haja vista que a contribuição do negro à sociedade brasileira ainda é limitada pelo mainstream a particularidades culturais. Na esteira de intelectuais como Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento, o que percebemos é que essa contribuição atravessa todos os ramos da vida brasileira.
Mercantilização da vida
Moura desenvolve uma crítica incisiva ao capitalismo, demonstrando que a colonização e a escravidão não foram incidentes históricos separados do desenvolvimento capitalista, mas que constituíram uma aliança das mais longevas e triunfantes para fins exploratórios. A subjugação de corpos negros, sua exploração como mão de obra e a mercantilização da vida humana foram centrais para a acumulação primitiva de capital. A partir de uma leitura anticapitalista, Moura ajuda a perceber como o racismo e o capitalismo estão interligados. O modo de produção capitalista não apenas perpetuou a exploração econômica dos negros depois da abolição, como também reconfigurou formas de dominação racial.
Esse aspecto da obra de Moura dialoga diretamente com as teorias feministas negras e anticapitalistas que afirmam que o racismo, o sexismo e o capitalismo operam em conjunto. Para as mulheres negras, essa tríplice opressão — racial, de classe e de gênero — se manifestou historicamente de forma brutal, sobretudo no contexto da escravidão, onde eram duplamente exploradas: como força de trabalho e como reprodutoras hipersexualizadas.
Moura diz que a abolição significou uma transição para novas formas de exploração e controle
A importância da quilombagem é outro ponto de destaque na obra de Moura. Para o pensador, os quilombos representam a mais significativa forma de organização autônoma e insurgente da população negra, muito antes do advento do movimento abolicionista. Ele argumenta que os quilombos, em sua pluralidade, não eram apenas refúgios de negros em busca de liberdade, mas espaços de construção política, social e econômica alternativos à ordem colonial e escravista. Essa resistência ativa rompe com a narrativa tradicional que retrata a população negra como passiva, à espera da libertação promovida por abolicionistas brancos.
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Juliana Borges
Ao resgatar a quilombagem como movimento de revolta contínua e organizada, Moura reconstrói a história da resistência negra, demonstrando que a luta contra o sistema escravocrata foi liderada, desde o início, pelos próprios negros, que não só fugiam do cativeiro, mas construíam espaços de liberdade e resistência coletiva. Essa inserção é crucial para entender a dinâmica histórica de luta antirracista no
país e reivindicar o protagonismo negro na construção de alternativas ao poder dominante, lançando as bases para o pensamento anticapitalista e de resistência comunitária que inspiram as lutas contemporâneas.
Moura também convida a uma análise crítica do mito da abolição formal da escravidão. Ele destaca que a abolição não significou a verdadeira libertação para a população negra, mas uma transição para novas formas de exploração e controle. Essa perspectiva dialoga com a tradição da teoria crítica negra à abolição inconclusa, que não tratou das questões estruturais que mantêm as desigualdades de raça e gênero. O sistema de justiça criminal, por exemplo, pode ser entendido como um dos mecanismos que perpetuam a desumanização, o controle e a marginalização da população negra, especialmente mulheres, que enfrentam a criminalização da pobreza e da maternidade.
Embora Clóvis Moura não tenha elaborado uma crítica focada diretamente nas questões de gênero, seu trabalho sobre a resistência negra nos quilombos e nas revoltas populares permite uma leitura que se entrelaça com o feminismo negro. Nos quilombos, mulheres negras desempenharam um papel crucial não só como líderes, mas como mantenedoras da vida coletiva e da cultura afro-brasileira.
Matéria publicada na edição impressa #87 nov em novembro de 2024. Com o título “Visão anticapitalista da resistência negra”
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