Coluna

Juliana Borges

Perspectiva amefricana

Representatividade real

A disputa por espaço não deve ser confundida com a maneira que certos grupos são retratados no espaço público

01jul2024 - 10h39 • 01jul2024 - 12h01 | Edição #83
"Particular", de Victor Fidelis (2021)

Em tempos de escalada de extremismos e aceleração das engrenagens do pacto narcísico da branquitude — com capturas sistemáticas de pautas como antirracismo e feminismo pelo neoliberalismo —, é comum ver discussões acaloradas sobre representação e representatividade. Enquanto alguns se utilizam da representatividade para reivindicar espaço, outros a culpam por esvaziamentos no debate e outros até questionam sua validade. O que vejo, no geral, é uma confusão sobre a ideia de representatividade.

Particular, de Victor Fidelis (2021)

Seria a representatividade apenas a presença única ou minguada de pessoas negras, indígenas, LGBTQIA+ em determinados espaços? Seria um pedido de licença para se sentar à mesa das desigualdades, na qual sabemos que não cabem todos, sobretudo se mantido o atual modelo econômico e político em que vivemos? Estaria a representatividade limitada à ideia mercadológica de diversidade?

A discussão e aprofundamento dos conceitos de representação e representatividade são importantes para a análise de dinâmicas sociais, culturais e econômicas contemporâneas, especialmente quando abordadas a partir de uma perspectiva racial e do feminismo negro. Embora frequentemente usados de forma intercambiável, há distinções que precisam ser compreendidas para uma análise crítica eficaz.

Retratos

A representação é pensada pela perspectiva de como grupos, indivíduos ou ideias são retratados em diversas mídias e narrativas sociais. É a construção simbólica desses sujeitos através de imagens, palavras e performances. No contexto racial e do feminismo negro, a representação abarca como mulheres negras são descritas, interpretadas e imaginadas em filmes, literatura, mídia e outros espaços públicos. Pode ser tanto positiva quanto negativa, realçando aspectos valorosos ou perpetuando estereótipos e preconceitos.

Historicamente, a representação de mulheres negras tem sido dominada por narrativas que reforçam estigmas, como a hipersexualização, a figura da cuidadora submissa ou da mulher “raivosa”. Essas representações não apenas distorcem a realidade como moldam percepções sociais e internas das mulheres negras, influenciando seu lugar na sociedade.

Presença

Já a representatividade se refere à reivindicação da presença efetiva e proporcional de grupos diversos em diferentes esferas da sociedade, especialmente nos espaços de poder e decisão. Ela implica em quem ocupa os lugares de visibilidade, autoridade e influência. Nesse sentido, a representatividade, quando pensada pela perspectiva do feminismo negro, é uma ferramenta política para demandas de combate à marginalização e garantia de que vozes das margens disputem espaços de poder. Ou seja, está muito além da mera presença; exige que as experiências e perspectivas políticas das margens sejam integradas e, aí sim, representadas e partícipes das decisões. Talvez seja aí que a coisa tenha se enrolado: quando o neoliberalismo se apropria, esvazia e transforma essa ferramenta em agenda da diversidade inclusiva, que pouco ou nada muda o jogo de poder.

Nosso principal desafio não é se sentar à mesa do capitalismo, mas transformar estruturas

O esvaziamento e apropriação neoliberal opera não apenas na ideia e exercício da representatividade, mas também em outras ferramentas conceituais formuladas pela intelectualidade e pelo ativismo negros. Um caso é a ideia de “empoderamento”, geralmente utilizada em contexto de “uma mulher empoderada”, quando o conceito, na realidade, promove reflexões e aponta ações coletivas. Isto é, não há empoderamento individual, senão de grupo. Mas as artimanhas e o simbólico neoliberais resumem essas ferramentas a concepções mercadológicas e individualistas. Assim, a frase “representatividade importa” se transforma em narrativa esvaziada, uma dinâmica de diversidade que não rompe com hierarquias, que fortalece o que chamamos de “síndrome do negro único”, aquela única figura que seria a representação de todo o grupo. Nesse caso, a imagem de como negros são lidos e vistos entra em um jogo articulado com a representatividade esvaziada e enfraquecida.

Escopo e impacto

A diferença fundamental entre representação e representatividade reside no escopo e impacto. Representação é mais sobre a imagem e a narrativa, enquanto representatividade foca na presença real e nas oportunidades para influenciar. No entanto, ambas estão interconectadas e são necessárias para a construção de uma sociedade equitativa. Por outro lado, servem como ferramentas para desafiar dinâmicas naturalizadas e reconfigurar discursos sobre a população negra. Ambas, de alguma forma, contribuem na resistência à opressão e ao apagamento.

A representação, por mais positiva que seja, pode ser superficial se não acompanhada de uma representatividade autêntica. A inclusão de personagens negros em filmes, por exemplo, pode se tornar um tokenismo (uma presença única como símbolo) se essas personagens não tiverem histórias complexas ou se não houver negros nos bastidores, como roteiristas e diretores. Por outro lado, a representatividade pode ser limitada pela própria estrutura de poder. A presença de mulheres negras em posições de destaque não garante automaticamente mudanças substanciais se as instituições em que elas operam permanecerem resistentes à transformação sistêmica. Daí a importância de Angela Davis, Lélia Gonzalez e tantos outros intelectuais negros que apontam a busca pela construção coletiva, já que nosso principal desafio não é se sentar à mesa do capitalismo, mas transformar estruturas que se alimentam e retroalimentam desigualdades.

Equilibrar representação e representatividade, e não permitir esvaziamentos e confusões sobre essas ferramentas é essencial para criar uma sociedade mais justa.

Quem escreveu esse texto

Juliana Borges

Escritora e livreira

Matéria publicada na edição impressa #83 em julho de 2024.