Coluna

Juliana Borges

Perspectiva amefricana

Obviedades que precisam ser ditas

Ainda é preciso nomear e proferir opressões e desigualdades raciais e de gênero, mas a velha conversa se renova e se refina continuamente

24mar2023 | Edição #68

Recentemente postei um tweet que envolvia alguma temática racial e que não trazia novidade alguma. Uns dez minutos depois, fui questionada sobre a importância daquele tweet, já que dizia o óbvio. O primeiro absurdo dessa situação é o ambiente das redes sociais, no qual pessoas acham que podem comentar, com o tom que bem entenderem, postagens alheias; o segundo é a pretensão de julgar o que eu poderia ou não postar; e o terceiro, não menos importante e talvez o mais elementar, é a desconsideração de que há momentos em que o óbvio precisa ser dito.

Uma das questões fundantes do feminismo negro é a necessidade de nomeação. Seja pela reivindicação sobre os nossos nomes — Lélia Gonzalez alertou que se não nos nomearmos, o racismo o fará como bem entender —, seja pela demanda para que opressões e desigualdades baseadas em hierarquias raciais e de gênero sejam proferidas. Outro ponto fundamental do movimento, historicamente apontado pela produção intelectual negra, é que, infelizmente, precisamos dizer o óbvio.

No Brasil, mesmo em 2023, é preciso falar sobre racismo. Ainda que o racismo estrutural seja assumido pela sociedade brasileira, são poucos os avanços substantivos e que provocam mudanças estruturais. Essa inércia, aliada a um avanço mínimo no entendimento de que apenas o reconhecimento da questão — que não se encerra em simbolismos e abstrações — não é suficiente, faz com que tenhamos que bater na tecla.

O racismo é um sistema. Como tal, se organiza e se reproduz de forma modular, institucional, cultural, política e social, conformado e se fazendo presente, de forma direta ou indireta, por um conjunto de práticas discriminatórias e de exclusão. A dinâmica que força negros e negras, de diversas formações e experiências, a seguir tendo que falar ou sendo reduzidos a falar sobre racismo demonstra que o óbvio não está tão constituído por obviedades — se assim é possível dizer — e que estas, por sua vez, não são percebidas de modo igualitário. O que quero dizer, simplificadamente, é: o que é óbvio para um pode não ser para o outro.

Emaranhado de sutilezas

Uma das mentes brasileiras mais brilhantes, a historiadora Beatriz Nascimento afirmava que o racismo brasileiro “é um emaranhado de sutilezas”. Quando Grada Kilomba desenvolveu sua tese sobre o racismo cotidiano, das coisas comezinhas às cheias de contornos, retomou formulações do sociólogo inglês Paul Gilroy ao lidar com a temática do silenciamento. Essas formulações foram definidas como “cinco mecanismos de defesa do ego branco” — dentre eles a recusa. Segundo Kilomba, a recusa age em nosso inconsciente fazendo com que refutemos o que consideramos desagradável ao nosso redor: “É a recusa em reconhecer a verdade”. Ao passo que o indivíduo nega em si práticas e pensamentos, os projeta no outro. E o que isso tem a ver com obviedades que precisam ser ditas? Tudo.

Ainda que o racismo seja assumido pela sociedade, são poucos os avanços substantivos e estruturais

A sociedade brasileira é um bom exemplo de recusa social. Em geral, as pessoas afirmam que há racismo no Brasil, mas atribuem sua reprodução ao outro. Se é verdade que a reprodução do racismo é uma questão de cerne institucional e estrutural, por ser complexa, ela também precisa ser avaliada e questionada no cotidiano e nas relações sociais. É preciso repetir exaustivamente o óbvio para que possamos avançar da recusa aos outros mecanismos de Gilroy até alcançarmos o último deles: a reparação.

Papo reto

Obviamente, permitam-me a ironia, não vamos tratar apenas do óbvio neste espaço mensal. Muito pelo contrário. Papo bom, por vezes alegre, por vezes jocoso, por vezes grave e sério, será o objetivo — ou ao menos o intento — da coluna. Tratarei de formulações e investigações produzidas pelo pensamento feminista negro que se renovam e se refinam continuamente. Este será ainda um espaço para trocar ideias sobre políticas de promoção do livro e da leitura.

O livro, a leitura e a escrita sempre me fascinaram e me levaram a ser considerada “muito quieta” e até “meio estranha” quando pequena. Por isso, optei por estudar Letras e, em meio a uma pandemia, resolvi tirar do papel o sonho de ter uma livraria. Tudo isso faz ser um tanto atraente para mim falar sobre políticas do livro na revista dos livros.

Percebo que as temáticas se relacionam, tendo em vista que reivindicações como educação; conhecimento; fortalecimento de bibliotecas, livrarias e produção literária; pluralização de vozes; direito de quebrar e desmantelar silêncios e projetar nossas vozes são, historicamente, questões que interessam à intelectualidade e à população negra no geral.

Mas aviso de antemão — e já culpando os astros e minha casa em peixes com ascendente em peixes — que posso acabar devaneando e flanando para outras temáticas. Pode ser que algum dia você me leia falando da Beyoncé retomando o house e celebrando os “balls”, da poética cortante de Nina Simone, do protesto de Billie Holiday e até do quanto David Bowie foi um gênio e Belchior é um dos maiores poetas brasileiros. O importante é saber que o que pretendo aqui é apresentar perspectiva posicionada, amefricana e sempre comprometida com o bom debate e a crítica, como diz a querida Débora Diniz, como elemento que busca promover o diálogo. 

Quem escreveu esse texto

Juliana Borges

Escritora e livreira

Matéria publicada na edição impressa #68 em março de 2023.