Coluna

Juliana Borges

Perspectiva amefricana

Liberdade tem nome de mulher

Relatos de prisioneiras iranianas são um poderoso aviso da necessidade contínua de lutar por igualdade de gênero e direitos humanos no mundo todo

01jun2024 • Atualizado em: 28maio2024 | Edição #82

Lembro do alvoroço quando a série The Handmaid’s Tale foi lançada. Eu mesma sou fã tanto de Margaret Atwood quanto dos livros e da adaptação, e inquietações circulavam entre amigas: imagina se isso acontecesse aqui? A maioria de nós achava muito improvável, muitas levavam a narrativa ao campo do fantástico, elogiando a mente criativa e criadora de Atwood. E de fato é. Mas é inegável que a inspiração da autora canadense surge das entranhas do real. A história fala de resistência e sexismo, mas também de despotismo, intolerância, controle sobre corpos e mentes.

Ao ler os relatos de prisioneiras de consciência do Irã em Tortura branca, da ativista e ganhadora do Nobel da Paz Narges Mohammadi, lembrava de Margaret Atwood, da personagem June Osborne e dos “commanders”. The Handmaid’s Tale foi classificada como uma produção distópica, e ao avançar na narrativa das iranianas percebi que já vivemos a distopia. Se a partir da série podemos estabelecer paralelos metafóricos sobre o controle dos corpos femininos em países ocidentais, cada novo relato das mulheres iranianas que lutam por liberdade — e são presas por isso — se apresentava menos representativo e mais real.

A ativista, escritora e Nobel da Paz iraniana Narges Mohammadi (Voice of America/Reprodução)

Se na distopia de Atwood uma facção extremista católica toma o poder nos Estados Unidos, fiquei pensando se no relato de Mohammadi eram grupos extremistas islâmicos que tomaram o poder no Irã. Estaria eu esticando demais a corda? Não só a autora, mas Nigara Afsharzadeh, Nazanin Zaghari-Ratcliffe, Sima Kiani e outras oito presas de consciência me gritavam em resposta: não!

O Irã, uma república teocrática governada por um sistema político complexo, enfrenta críticas constantes devido à sua abordagem repressiva aos dissidentes e opositores políticos. O país adota uma estrutura de poder onde o clero exerce uma influência significativa sobre as instituições estatais. Embora haja presidente eleito — o atual, Ebrahim Raisi, morreu em um acidente de helicóptero no dia 19 de maio e novas eleições devem ser convocadas —, seu governo é subordinado a essa autoridade religiosa e as políticas, bem como a Constituição e o funcionamento das instituições, devem funcionar em conformidade com os princípios da teocracia islâmica. No Brasil, temos grupos extremistas, ainda que não assim classificados, com um projeto político de poder cada vez mais evidente. Talvez a distopia seja mais real do que imaginamos.

Durante a leitura, os pontos de contato — entre eu e Mohammadi, nossas lutas e a luta de June — foram abundantes. E embora Brasil e Irã sejam países distintos em muitos aspectos, há lamentáveis paralelos entre seus sistemas penitenciários. Ambos enfrentam desafios semelhantes que resultam em condições de vida deploráveis para os detentos e violações sistemáticas de seus direitos básicos.

Marcas psicológicas

A expressão “tortura branca” evoca uma forma insidiosa de violência, onde as marcas físicas são substituídas por técnicas psicológicas de tormento. No contexto das prisões iranianas, essa prática assume contornos sinistros, corroendo a sanidade dos detentos. Técnicas como privação de sono, isolamento prolongado, humilhação sistemática e manipulação psicológica são usadas para minar a estabilidade emocional e mental. O objetivo é induzir um estado de desespero e submissão, sem deixar evidências visíveis de agressão. Essa também pode ser considerada uma manifestação de violência de gênero, especialmente quando aplicada de maneira sistemática e direcionada a mulheres.

A tortura branca se encaixa nesse padrão de violência ao explorar vulnerabilidades emocionais e psicológicas, buscando minar a autoestima, a autonomia e o senso de identidade da vítima. Nos relatos do livro, estão presentes todos esses mecanismos: a não autorização de telefonemas, a solitária por períodos longos — uma média de um ano —, a negação do acesso a advogados, a pressão e a exposição de familiares, a falta de luz natural, as perguntas de cunho sexual (como precisar descrever suas relações sexuais com seus companheiros). As consequências são severas: estresse pós-traumático, desenvolvimento de doenças mentais e físicas pela negação de cuidados médicos adequados e pelo uso de medicamentos, muitas vezes sem consentimento.

Embora Brasil e Irã sejam distintos, há lamentáveis paralelos entre seus sistemas penitenciários

Muitas das prisioneiras de consciência do Irã são detidas não por crimes, mas por suas crenças, ativismo político ou simplesmente por expressarem suas opiniões. Mesmo sob condições brutais, essas mulheres demonstram resistência e lutam por seus direitos e por justiça.

“O despotismo, escondido atrás da máscara da religião”, diz Narges Mohammadi, “impôs a repressão, a dominação, a pobreza e a miséria generalizada no Irã”. Ela segue: “Sabemos ‘o que queremos’ com muito mais clareza do que ‘o que não queremos’”. Talvez seja essa certeza do que se quer que alimente os sentidos de luta e liberdade dessas mulheres. As suas histórias ecoaram não apenas como lembrete, mas como um aviso poderoso da necessidade contínua de lutar pela igualdade de gênero, pela liberdade de expressão e pelos direitos humanos em todo o mundo. Ler seus relatos nos faz sentir em uma conversa com todos elas sobre as alianças que devemos construir, e nos lembra que quando uma de nós é atacada, subjugada e oprimida, todas somos.

Ao longo da leitura, enquanto os relatos me atravessavam, me perguntei muitas vezes: “O que as move?”, “teria eu essa capacidade de resistência?”. E escutava em seguida a voz imaginada de Mohammadi me dizendo: todas temos o poder de resistir, não porque somos heroínas, mas porque luta e liberdade têm nomes de mulher.

Quem escreveu esse texto

Juliana Borges

Escritora e livreira

Matéria publicada na edição impressa #82 em junho de 2024.

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