Coluna

Humberto Brito

Onde queremos viver

Uma troca de guês

Ao mostrar uma fotografia, dá-se a ver o próprio ponto de vista, a fisionomia da sua perspectiva

19out2023 | Edição #75

Uma das minhas imagens favoritas de Diane Arbus foi fotografada aqui. É uma das suas mulheres de olhar absorto e opaco: “Woman with a locket in Washington Square Park”, 1965. Quem for à procura verá um tema recorrente em Arbus: mulheres abstraídas; de preferência, mulheres abstraídas a olhar directamente para a objectiva. Alguns exemplos são: “Puerto Rican woman with a beauty mark”, 1965; “Woman with parcels”, 1956; ou o quase burlesco par de nudistas “A husband and wife in the woods at a nudist camp”, 1963, no qual a opacidade da esposa contrasta com o estar tudo à vista, contraste levado a um extremo cómico em “Nudist lady with swan sunglasses”, 1965: tudo à vista, menos a alma.

Pense-se nas imagens de Arbus como contos de Nabokov escritos por Clarice Lispector

Ou como Wittgenstein não escreveu: a melhor imagem da alma humana são os óculos escuros, numa sociedade puritana. Para quem não conhece Arbus, ou apenas a conhece por via dos “freaks”, para usar os termos das suas mais severas críticas, pense-se nas imagens que referi como contos de Nabokov escritos por Clarice Lispector. Talvez fossem no fundo autorretratos. Quando se mostra uma fotografia, dá-se a ver o próprio ponto de vista, a fisionomia da sua perspectiva. Olhe através de uma objectiva e tente perceber seus pensamentos. As mulheres de Arbus têm este género de opacidade.

Este motivo talvez tenha origem numa fotografia de Arbus feita por Walker Evans. É o retrato de uma morena de brincos e chapéu negro, traços italianos ou portugueses, nos anos 30, no metrô de Nova York. No instante do disparo, olha a direito para Evans, mas de uma forma pela qual não se sabe dizer se vai perdida em pensamentos, se se sente observada. A imagem apreende a indistinção momentânea entre opacidade e reconhecimento. É ela mesma uma fisionomia de Evans: um autorretrato enquanto fotógrafo.

Susan Sontag, que entendeu a fotografia sistematicamente ao contrário, a começar pela de Arbus, escreveu todavia uma frase verdadeira: “Há algo na cara das pessoas quando não sabem que estão a ser observadas que nunca está presente quando o sabem”. Evans descreve as imagens por palavras parecidas: no metrô, “baixa-se a guarda e a máscara cai. O rosto das pessoas vai em nu repouso”. O apelo deste nu repouso faz parte de se estar apaixonado pela superfície da vida, pelo fluxo do presente. Se o interrompes, desaparece.

Para explicar que nada havia de errado em fotografar estranhos no metrô, Evans deu os exemplos de Daumier e Goya. Daumier, sim, fez desenhos de pessoas em carruagens. Mas Goya? Os seus desenhos são outra coisa, têm outro pathos. Através do parque, onde jazem 20 mil cadáveres baudelaireanos (a praça é construída sobre uma vala comum), ocorre-me que o lapso de Evans é simples troca de guês. Ele queria dizer Daumier e Gavarni, porque decorara O pintor da vida moderna para a entrevista. Então, levanto os olhos para agradecer a errata ao fantasma de Leslie Katz e acordo rodeado de vida: estudantes, turistas, traficantes de erva, a livre e bela fluidez do parque público, indiferente ao cemitério que pisa, e eu, absorto e caduco, uma mulher de Arbus a caminho da biblioteca.

Quem escreveu esse texto

Humberto Brito

É escritor, ensaísta e fotógrafo

Matéria publicada na edição impressa #75 em outubro de 2023.