Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

A vida imaginada

Deixara o meu país e nenhuma personagem que eu havia criado se tinha despedido de mim

26set2023 | Edição #74

Foi nas primeiras semanas após termos mudado para Nova York. Doíam-me os músculos da ponta dos dedos dos pés até a testa. Conseguia dormir, mas os dias eram infindáveis e as noites curtas. Nos sonhos, apareciam-me animais misteriosos. Pavões vermelho-vivo, leopardos roxos. As casas eram ainda mais estranhas, nos sonhos, do que costumavam ser em sonhos anteriores, janelas que espreitavam a rua, como línguas fora da boca, chaminés das quais saíam fumos picantes. No edifício em frente, um gerador fazia tamanho barulho que nem ouvia passar os aviões no céu, rente ao cimo dos prédios. Na Bleecker Street, os cães eram diferentes. Pareciam homenzinhos de ombros musculados, senhores de si e amestrados, estranhamente emasculados.

Vinha à espera do outono, mas fui recebida por dias e noites húmidos e quentes, em que transpirávamos e nos sentíamos zonzos. O cheiro a erva sentia-se assim que se saía do prédio. Rapazes asiáticos solitários, de máscara, deambulavam nas ruas próximas ou paravam à sombra das árvores a resolver equações no iPad, aparentemente desorientados. Depois, a pouco e pouco, deixou de me doer o corpo e a cabeça. Deixei de sentir que explodia a cada sirene ou que ia cair a cada passo.

Durante anos, desabituara-me das pessoas de carne e osso e vivera entre pessoas imaginárias. Não era como se os outros me tivessem abandonado, mas só tarde entendi que quando se abre a porta a seres que não existem passamos a ser seus escravos. Eu imaginara o contrário, passando horas a fio a compor os hábitos desses seres. Construíra-lhes vidas, mentes, histórias, até que me enredaram num drama muito além daquele de que os incumbi. Estranhas criaturas para quem, para eu lhes ser hospitaleira, havia que fechar as portas aos vivos.

Entendi que quando se abre a porta a seres que não existem passamos a ser seus escravos

Agora, chegada à cidade, a precariedade desse abrigo mostrava-se em todo o esplendor. Deixara o meu país, e nenhuma personagem me levara até ao aeroporto. Nenhuma delas me dissera o quanto sentiria a minha falta. Nenhuma das pessoas que eu havia criado, nos meus livros, se tinha despedido de mim. Via-os, agora, senão como inimigos pelo menos como vizinhos indiferentes. De que havia servido o tempo que passáramos juntos, se nunca trocáramos uma palavra?

Não sabia de que costela do meu corpo arrancara esse cortejo silencioso de gente, que não fizera comigo a travessia. Sentia-os, a eles e a elas, pertença da terra que eu deixara, e que não os tinha trazido comigo. Que fora afinal a nossa amizade, se eram agora, à distância de um mar, linhas em páginas já amareladas, e em breve, apenas só isso — de que havia servido o tempo que lhes devotara, roubado à vida, à alegria e à amizade?

Apetecia-me escrever a conclusão na terceira pessoa, como se não me dissesse respeito e não me envergonhasse tanto: fora tempo perdido, que ela não acharia mais. Cada personagem roubara-lhe um naco de carne, todas juntas haviam-na lançado na doença. Ela sabia, só agora, não haver redenção nenhuma na vida imaginada. Aprendera tarde que nada igualava o vento e o calor que vem dos vivos.

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #74 em setembro de 2023.