Coluna

Humberto Brito

Onde queremos viver

A frase seguinte

Quando saiu a notícia da morte do catedrático, tive falsa pena. Mas hoje queria ser ele por um minuto

05out2023 | Edição #75

“Foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet… como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido.” Oito ou nove undergraduates olham-me ensonados enquanto lhes leio as palavras de Brás Cubas sobre o instante da sua morte. Chove nova-iorquinamente, é segunda-feira cedo na rua Mercer 194, fixo a expressão dos garotos, que ainda não percebem bem o que espero deles. Gostaria de poder fotografá-los neste instante indecisivo da mocidade: mal acordados, despenteados, indefinidos, pensativos, roendo as canetas, sem consciência da sua própria face obsoleta. Obsoleta mas inteligente. Lá para onde se encaminham, não é provável que precisassem ter lido as Memórias póstumas; no entanto, esquecidos da sua própria direcção, põem seriedade na leitura. Pode ser que um ou outro finja seriedade, o que já não é mau, chega a ser comovedor. É uma imagem bela, que se repete, e que nunca poderei fazer com uma câmara. Através da janela, a enorme orquestra da vida ressoa, trazendo à memória aquele verso de Cohen que me tem embalado. Apetecia-me cantar esse verso para lhes explicar não sei quê — e o que me impede? vergonha de desafinar? de parecer tolo diante dos alunos? e noto através de uma energia diferente na sala que a minha suspensão se alongou e é preciso seguir, dizer a próxima frase.

Era uma situação magnética. Fumava aula atrás de aula com igual descaramento

Na idade deles, tive um professor de fonologia, um homem alto e ossudo, das 8h às 10h, numa sala da Faculdade de Letras. Desprezava-nos solenemente. Na verdade, não era pessoal, desprezava a sua própria profissão, o estar obrigado a passar umas horas por semana na companhia de invertebrados. Entaramelava um falso cumprimento, sentava-se à secretária, arrancava uma página do caderno de argolas, com a qual improvisava um pequeno cinzeiro. Acendia o primeiro cigarro e recostava-se. Depois desse, outro, e assim sucessivamente (éramos assim absurdos em 1999). Fumava-os e apagava-os com um jeito lento e sádico, virando os olhos para nós, para a janela, tossicando, fazendo rolinhos de papel com a apara arrancada que fica presa às argolas do caderno. Confusos, buscávamos respostas na cara uns dos outros, roíamos as canetas, trocávamos bilhetinhos. Era uma situação magnética, paralisadora. Fumava aula atrás de aula com igual descaramento. Na sua idade e posição, no século 20, jamais seria despedido. Verbalizava de novo, a esfinge, por volta das 8h45. Para nos manter ocupados, formalizava através de símbolos da fonologia uma interacção numa língua amazónica morta ou inventada, que nenhum de nós podia saber, excepto o génio da turma, que lera o livro. “Agora, decifrem.” Ia assim de cigarro em cigarro até as 9h30. Seguia-se o monólogo de quinze minutos, cortado por caçoadas sobre nossa debilidade intelectual, de que se ria. Suas palavras eram filtradas pelos bigodes amarelos, não queriam ser percebidas.

Robert Adams comentou que a academia é cruel: a gente envelhece cada vez mais e eles nunca param de ser jovens. Quando saiu a notícia da morte do catedrático, tive falsa pena. Mas hoje queria ser ele por um minuto. Ver as caras daquela turma entre as quais a minha, ensonada, obsoleta, confusa, eu nos meus salad days, desconhecendo a matéria. A terra desconhecida de onde não se volta mais é afinal a frase seguinte, a valsa no presente, o chegar-se à frente e convidar-te a dançar, o New York is cold but I like where I’m living, la la la…

Quem escreveu esse texto

Humberto Brito

É escritor, ensaísta e fotógrafo

Matéria publicada na edição impressa #75 em outubro de 2023.