O presidente Trump em entrevista à Fox News, abril de 2025 (The White House/Reprodução)

Onde Queremos Viver,

A escala

Da noite para o dia, a política externa norte-americana é uma série de pegadinhas atrozes

01maio2025 • Atualizado em: 30abr2025 | Edição #93

A guerra comercial transformou o quotidiano num episódio de Jackass. Acidente em câmara lenta: repetição, repetição, repetição, ad nauseam. Da noite para o dia, a política externa norte-americana é uma série de pegadinhas atrozes e acrobacias perigosas. O que vai acontecer, ninguém sabe, excepto que haverá mortos e feridos. Certas consequências dão sincera vontade de rir, como o súbito pânico dos mesmíssimos bilionários. Reacção vã e que me cobre de vergonha. Não se assa um porco deitando fogo à casa. E depois vem a cara torpe do platinado-laranja, em fato de gala, declarando “agora quem vai roubar somos nós”. 

Fala como um bandido num western cujos figurantes de saloon numa vila dominada são os mesmos actores contratados nos noticiários da noite; e dum estúdio para o outro a transição é tão rápida que nem mudam de fato e se esquecem de sacudir o pó dos cotovelos, ou ainda vêm bêbados. Foi um pesadelo? Será que dormitei? Mudo de canal e todos são idênticos: as mesmas pessoas apenas disfarçadas de outras pessoas. 

Até que me aparece Bill Burr encurralado por repórteres à margem de uma gala. (Tantas noites de gala no apocalipse.) Pressionado a responder a perguntas levianas sobre temas sérios num contexto frívolo, furta-se como um cachorro no veterinário. “Não vos darei um momento controverso para terem cliques à minha custa”, atira. “Não vejo as notícias, vejo o Instagram; vejo gajos a estreparem-se em motorizadas, vejo brigas de leões e hienas… Não deviam perguntar isso a um comediante. Os jornalistas são vocês, esse não é o meu trabalho: sou um palhaço dançante.”

Como dominar o mundo a partir da bancarrota? Levando-o à bancarrota, a qualquer custo

Um palhaço dançante sempre tem a escusa de o ser, mas tu, professor, colunista, que escusa é a tua? Nihil sub sole novum: é a jeremiada de Flaubert segundo o qual não nos compete (às elites literárias) falar da actualidade. E, porém, nos diz Pessoa: 

As misérias de um homem que sente o tédio da vida do terraço da sua vila rica são uma coisa; são outra coisa as misérias de quem, como eu, tem que contemplar a paisagem do meu quarto num 4º andar da Baixa, e sem poder esquecer que é ajudante de guarda-livros.

Contemplar a paisagem sem se poder esquecer de que se nasceu peão no grande xadrez da actualidade leva a todos os géneros de escapismo. Brigas entre leões e hienas não deixam de ser uma crua alegoria do presente, na perspectiva da presa. A televisão transformou a vida contemporânea num colectivo Alzheimer e pede opiniões a palhaços de todo o tipo, a toda a hora. O que vai acontecer, ninguém sabe, excepto que haverá choro e ranger de dentes. Só que muitos não-o-sabem com um brilhozinho nos olhos. E justificam com fervor de lacaios as tarifas e atrocidades análogas na macrolinguagem da economia e da história da guerra.

Como dominar o mundo a partir da bancarrota? Levando-o à bancarrota, a qualquer custo; depois, à divisão. Claro que dos terraços das suas vilas ricas esse custo é negligenciável. Menos para os bilionários, que ficam menos bilionários, pobrezinhos. E eis que um tímido, irónico, optimismo baseado na pura esperança desponta, vejam bem, nos partidários do mais cínico, conservador e bruto racionalismo económico. Salivem, jackasses. Preparem-se para tudo. A escala é o equivalente retórico do napalm.

Quem escreveu esse texto

Humberto Brito

É escritor, ensaísta e fotógrafo

Matéria publicada na edição impressa #93 em maio de 2025. Com o título “A escala”

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