
Onde Queremos Viver,
Quanto fio
É um dos grandes mistérios da existência: a resiliência da seda versus a resiliência do eu
29maio2025 | Edição #94A corrente de ar. Estou a fazer alguma coisa, por exemplo, nada, ou esqueço-me de mim mesmo diante da página, ou do parágrafo, ou da escolha de palavras, paisagem em face da qual um trôpego fotógrafo estuda a forma certa de a mostrar, até que chega à casa e percebe que isso não existe — e o jantar esfriou; ou então cismo, introspectivo, dormitante, hipnotizado, nalguma banalidade extrínseca, digamos, aquele aranhiço ali, diante da janela aberta, suspenso no próprio fio.
A aragem sopra-os em ovais malucas. Quase não se vê. Aparece e desaparece a pairar sucessivamente da luz para a sombra, fino risco incandescente; trapezista, flutua, ora sem arnês, ora fiado na própria linha. Pende, paciente, na extremidade da seda e retoma o acto assim que se reequilibra, com movimentozinhos de patas. O fio estica, estica, não parte. Como não? Quanto fio cabe numa aranha? A quanto vento resiste, em nós, este fio?
Escrevo e apago, escrevo e apago. É talvez o gesto mais repetido da minha vida adulta. Mas tu, não, aranha
Pestanejo. A cena repete-se. Bastava passar a mão de leve e acabava-se a dança. Nem sentiria na aresta da mão a resistência da seda. Saber que o meu enfado poderia esmagar os teus motivos… E soprando este conceito na direcção da luz, vejo que o teu número de circo presume a possibilidade do bem, aranhiço. O seu estado de graça pressupõe esta coisa bela, caduca, determinante. A benignidade do espectador. Pressupõe por conseguinte também a maldade e a má-fé. É assim que o que escrevo se deixa e não deixa escrever-se, reparo agora: escreve-se na condição deste chiaroscuro. É uma pequena metáfora da indeterminabilidade do público e, antes de mais, da minha própria ambivalência, primeiro leitor do que escrevo. Somos, por natureza, intermitentes. Escrevo e apago, escrevo e apago. É talvez o gesto mais repetido da minha vida adulta. Mas tu, não, aranha. Tu que digeres indiferentemente as nossas traças: a tua agilidade, a tua felicidade, amiga, depende e prescinde de mim.
E (como já se previa) a aragem ganha brusca intensidade: estrondo! Há uma porta que bate e mordo um baque existencial, uma ira reflexa, que me desfigura. Mas contra quem, contra quê? Alguma coisa se partiu. Uma sensação de mão para a qual todo eu era luva. Estava em corrente de ar, na manhã morna. Revelou-se sob a forma da perda. Mas contra quê?
Mais Lidas
A interrupção de um sonho? O seu ângulo cego? Ou terá sido a ficção latente da continuidade do mundo com a perspectiva da primeira pessoa? O “eu” ser esta cadeira mal equilibrada na qual te sentas distraído? Saberes que a porta vai bater só no instante antes, exactamente imparável? A amostra da morte? Através da casa sopra agora uma quebra triste que é um rasgo para essa compreensão através do abatimento que se segue ao corte da vida pela vida.
E às vezes a corrente de ar vem à memória por analogia com as pequenas mundanidades: cada toque de mensagem; cada notificação inoportuna; cada cão a ladrar no andar de cima; e o presente enquanto perda. Então, os olhos vão na direcção do aranhiço. Persiste? Sim, persiste. Vacilante e intacto. Apetece dizer, alegre, feliz. Quanto fio cabe numa aranha? É um dos grandes mistérios da existência: a resiliência da seda versus a resiliência do eu.
Matéria publicada na edição impressa #94 em junho de 2025. Com o título “Quanto fio”
Chegou a hora de
fazer a sua assinatura
Já é assinante? Acesse sua conta.
Escolha como você quer ler a Quatro Cinco Um.
Faça uma assinatura anual com até 56% de desconto e ganhe uma ecobag exclusiva!
Entre para nossa comunidade de leitores e contribua com o jornalismo independente de livros.
Porque você leu Onde Queremos Viver
Espiral vertiginosa
Como navegar o presente e conseguir ainda ouvir a música interior?
MAIO, 2025