
Onde Queremos Viver,
O Cretinoceno
Sentimos dificuldade em falar sem apelar à tropologia do capital. Nadamos na ficção
01mar2025 • Atualizado em: 25fev2025 | Edição #91 marO sistema soviético era um regime totalitário e politicamente violento. Era-se submetido a rituais de iniciação sem fim na tentativa de criar o bom cidadão soviético. E isso não se faz nas sociedades abertas.
Abby Innes escreve em Late Soviet Britain: Why Materialist Utopias Fail (Cambridge University Press, 2023), no qual traça um espantoso paralelo entre as formas de justificação económica do leninismo e do neoliberalismo. A professora de economia política da London School of Economics ainda adverte: o que nos falta em terror iniciático “sobra-nos em subjectividade neoliberal.”
“Tropos esquerdistas”, gemem logo as personagens-tipo da guerra cultural. Claro que o tropo do vizinho é sempre um mero tropo. Já o nosso vocabulário tem a transparência do ar… Há descrições e estruturas de pensamento a tal ponto embutidos na cultura que tendem a escapar ao escrutínio retórico. Mas aqui Innes levanta o véu sobre um padrão tropológico dominante do qual não é, decerto, a primeira a dar-se conta. A autora explica o que entende por “subjectividade neoliberal”:
Usa-se cada vez mais a linguagem da economia no modo como pensamos sobre nós mesmos, sem necessariamente percebermos o que estamos a fazer. Por exemplo, está a auto-optimizar-se enquanto agente económico? Teve um dia produtivo? Está a viver a melhor versão possível da sua vida? Está a investir o suficiente na sua vida amorosa, na sua educação, no modo como conduz a sua vida?
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Para nos apercebermos da influência deturpadora deste modo de falar sobre a esfera privada, se é que esta ainda existe, experimente dizer o mesmo por outras palavras. Pasme-se. Repita o teste ao longo da semana. Palavras como “vantagens” e “recompensas” vão empalidecer em face da compreensão que acompanha: uma visão mais paciente, matizada da sua existência e daqueles que a rodeiam. A verdadeira lição, porém, é sentir dificuldade em falar sem apelar à tropologia do capital. Nadamos na ficção do racionalismo económico. Não: estamos a afogar-nos.
Bizarrias eugenistas deixaram de chocar as maiorias, que só se irritam com pronomes
O cretinismo programado pede inteligência artificial. A ossificação global dos vocabulários de Silicon Valley remete a uma alarmante engenharia da “subjectividade”. O seu magnetismo sobre gerações de autoditactas cínicos; a sua acção abrasiva sobre o discurso; a servidão solícita — é natural que isso agrade a meia dúzia de bilionários. Bilionários cujas bizarrias eugenistas e racistas deixaram de chocar as maiorias, que só se irritam muito com pronomes.
No ensaio “Homo Algorithmicus”, Alex Gendler escreve:
Obcecados com optimizar cada aspecto das suas vidas — pensamento, dieta, relações, envelhecimento, reprodução — os acólitos do progresso têm trabalhado duro no desenvolvimento de um novo homo algoritmicus.
E adverte: “para povoar e governar o futuro Nerd Reich”.
Ainda abaixo dos acólitos vem a figura mais perversamente ponzi do presente: o escravo-evangelista. Um exército de youtubers, tiktokers etc., cuja melancolia vem disfarçada de optimismo e inevitabilidade. E vêm por fim os comuns, as maiorias sem ralações tropológicas, na base da cadeia alimentar. A versão beta do cyborg. Fitter, happier, more productive. Avé.
Matéria publicada na edição impressa #91 mar em março de 2025. Com o título “O Cretinoceno”
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