Detalhe de *The Hold House Port Mear Square Island Port Mear Beach* (c.1932), de Alfred Wallis (Tate Modern/Reprodução)

Onde Queremos Viver,

Vidro sujo

O nosso tempo em comum está no álbum de fotografias que não se tiraram

01mar2025 • Atualizado em: 25fev2025 | Edição #91 mar

Há um lapso fotográfico de cinco anos na nossa vida em que duvido que tenhamos existido. Vivemos como se não fôssemos acabar. Agora que é certo que não acabámos, precisamos de prová-lo, com uma careta redundante à nossa própria incredulidade. Descíamos e subíamos a Travessa. Esqueci-me do interior da nossa casa. Por vezes, passamos em frente ao vidro sujo da nossa janela desse tempo, entregue agora a um grupo de estudantes. Penso em pedir para entrar. Seria como visitar a casa em que se nasceu. Levámos o nosso espírito quando saímos.

Diz-se que vivemos ali — dizemo-lo. Estamos todavia quanto à nossa morada antiga na mesma distância de homens célebres para paraísos acidentais, como padroeiros de circunstância. A verdade é que esquecemos tudo. Temos a falta de memória de um notável. As nossas estadias não enobrecem os lugares, como mostram as frontarias envelhecidas desses paraísos.

Já passou o nosso primeiro verão célebre. Fotografámos como perdidos. Os nossos álbuns mostram dois estranhos exibindo o melhor lado ou uma esplanada de praia onde gostávamos de acabar. Existe qualquer coisa de profundo em viver-se dentro de uma casa, uma tangibilidade transferida entre o espírito e a matéria que nos mostra o desajuste das placas comemorativas. Nós habitamos um mesmo lugar que transportamos. Apenas se muda de casa por licença poética. Transplantámos a
casa que havia na Travessa para a seguinte. A nossa alma desconversa nas fotografias: só figuradamente se escreve “Aqui viveu”.

Percebo agora que esquecemos os anos em que nos esforçámos por esquecer. Encontrámos a via da nossa extinção na extinção que perseguíamos, trazendo às costas um pequeno mundo onde habitarmos. Vasculho fotografias de quando eras pequeno perguntando-me como estou para a tua infância. Vejo nelas, de algum modo, o meu passado. Vestiram-nos roupas parecidas, escorregámos para as mesmas piscinas, gabámos os mesmos coches.

Habitamos um mesmo lugar que transportamos, apenas se muda de casa por licença poética

Encontro imagens desfocadas de alturas em que foste tu que fotografaste. A beleza das fotografias que desfocámos quando éramos pequenos não parece ter sido uma conveniência redentora irrelevante. Aprende-se cedo a posar para imagens. As crianças fazem-no, mecânicas, repetindo um trejeito de cabeça, ou recolocando os membros com graça. São ainda, em pequenas, do tempo em que havia um código de posar, e nisso se assemelham aos nossos antepassados, para quem ser fotografado era uma ocasião memorável.

Estamos para a infância daqueles que são importantes para nós não na realidade que as imagens dos seus álbuns mostram, mas nas fotografias frustradas, aquelas para que não tiveram paciência. Estamos para a sua infância nas fotografias que não se tiraram ou se tiraram à força. O tempo valioso que lhes roubavam é o nosso passado, independentemente de o paralelismo parecer estar no modo como se vivia na época.

O nosso tempo em comum está no álbum inexistente em que surgimos contrariados, ou o de fotografias que não se tiraram, porque a nossa indisposição levou a melhor sobre os fotógrafos. É em relação à possibilidade frustrada de tais álbuns que se pode dizer que estávamos na vida das pessoas que são importantes para nós. Estive lá, na tua vontade de que te deixassem em paz e nos afazeres inadiáveis que te preocupavam.

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora portuguesa, publicou Esse cabelo, A visão das plantas e O que é ser uma escritora negra hoje (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #91 mar em março de 2025. Com o título “Vidro sujo”

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