Coluna

Renan Quinalha

Livros e Livres

Amores brutos

Alvo de censura após vencer o prêmio Sesc, romance revela nas fissuras de um cotidiano de violências os desejos entre homens no garimpo de Serra Pelada

01jul2024 - 10h36 • 01jul2024 - 12h02 | Edição #83
(José Dilson/Divulgação)

Quanto incômodo pode causar uma carne estranha em um festival literário? Qual o limite moral imposto a um livro para não desagradar leitores mais conservadores? Outono de carne estranha, do veterano escritor paraense Airton Souza, tornou-se conhecido antes mesmo de ser lido pelo público mais amplo. Por uma boa e merecida razão: foi o vencedor do disputado prêmio Sesc de Literatura de 2023 na categoria Romance, uma das principais premiações literárias do país.

O escritor paraense Airton Souza (José Dilson/Divulgação)

No entanto, outra razão para se ter ouvido falar do título é a polêmica de que ele foi alvo. O que era para ser uma celebração dos vinte anos do prêmio, com um singelo momento para a leitura de alguns trechos por Souza na última Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), tornou-se um lamentável episódio de censura.

Alguém da organização do evento pediu ao autor, primeiro, que não mais lesse um trecho na cerimônia. Diante da insistência de Souza para cumprir o que fora previamente combinado, foi lido o instigante parágrafo de abertura de seu livro:

Quanto mais socava a pica no cu de Zuza, mais Manel escutava o barulho das picaretas. Dos enxadecos. Das mãos repletas de calos. Das velhas enxadas enferrujadas. Dos pedaços de paus. Das bateias roçando levemente sobre a água. Das pás afundando no chão amarelado dos barrancos e dos paredões, quase acinzentados de terra, que formava a cava.

Apesar da evidente beleza deste início, que mistura a referência a um breve contato sexual entre dois homens e amplia a cena com uma metáfora sobre os barulhos e demais sensações físicas dos corpos em meio a um território rural, a leitura causou desconforto entre dirigentes do Departamento Nacional do Sesc. Até mesmo o registro em vídeo foi retirado das páginas do prêmio dias depois.

Para Souza, tratou-se de um episódio de homofobia (por considerar inaceitável a leitura de um trecho que menciona um ato sexual entre dois homens) seguido de censura (retirada do conteúdo gravado das páginas da instituição).

Infelizmente, é difícil não concordar com o autor. Em pleno século 21, estranhas não me parecem ser as carnes retratadas, mas essa reação inexplicável que altos dirigentes — alheios ao preparo dos membros do júri — tiveram ao rechaçar uma obra artística.

Literatura dos rincões

O livro de Souza é fundamental por seu valor literário, manifesto na narrativa bem alinhavada em linguagem crua e delicada, explícita e metafórica na medida certa. Mas também por retratar algo pouco conhecido por parcela significativa da literatura nacional: os rincões, os interiores, as zonas rurais, em suma, o campo, região na qual sempre grassaram o poderio dos latifundiários e o analfabetismo imposto para a população mais pobre.

A história se passa no maior garimpo a céu aberto do mundo, o de Serra Pelada, ao sul do Estado do Pará, entre 1980 e 1983. Ali aparecem as agruras vividas pelos “formigas”, que carregavam sacos pesados de terra escadas improvisadas (chamadas “adeus mamãe”) acima, além dos desmandos do Marechal e seus capangas (os “bate-paus”), as ações e omissões estatais que permitiram as violências contra o meio ambiente e as pessoas mais humildes. Há no entanto uma potência, nas brechas e fissuras dessa ordem violenta, para que homens rudes possam viver seus desejos do modo como o sentem. E a linguagem só expressa a crueza e a dureza dessa relação.

Mais uma vez, se reduz a complexidade de vidas LGBTQIA+ a uma única dimensão, uma cena de sexo

Ao ver tamanha reação contra o romance, não há como não deixar de pensar sobre quais histórias e corpos (ou quais carnes, para retomar o título) estamos permitindo circular em nossas premiações, estantes e festivais.

Temos um número cada vez mais significativo de obras literárias que atravessam ou incorporam o universo LGBTQIA+, seja por seus autores e autoras, seja pelas personagens e tramas. Mas será que estamos garantindo essa liberdade apenas quando há uma higienização dessas histórias? Só aceitamos e promovemos quando notamos que o sexual se converteu em afeto, mais fácil de digerir? Só toleramos se os arranjos de desejo se submetem à estrutura tradicional da família patriarcal e da heteronormatividade?

Além do evidente conservadorismo moral que ainda parece persistir nessa regulação do dito e do não dito, há outra problematização da maior importância: o quanto do universo popular está cabendo no mundo da literatura?

O romance de Souza não é “apenas” uma obra LGBTQIA+. Essa é uma das questões que o atravessa, mas há outras que são muito expressivas, basta ler para além da primeira página para notá­-las. Além de Manel e de Zuza, outra figura de relevo é o padre Zacarias, que trocou a batina pela bateia.

Esses protagonistas alimentam, em condições adversas de autoritarismo e exploração, o sonho por “bamburrar”, ou seja, conseguir grande quantidade de ouro. Nessa jornada, cruzam-se religiosidade, escassez e dificuldade da subsistência, medo das violências, sonhos e desejo de estar longe dali. Brutos não parecem ser eles, mas as condições de vida a que foram submetidos, e a narrativa consegue tratar disso de modo poético e direto.

Como se vê, a história vai muito além de uma cena de sexo. Mas, mais uma vez, se reduz a complexidade de vidas LGBTQIA+ a uma única dimensão, como se só uma coisa tivessem a dizer para o mundo.

Isso torna mais grave o episódio de homofobia e de censura apontado no início deste texto. Passamos por alguns anos recentes nos quais a moralidade tentou se impor à liberdade artística. Editais de financiamento para obras audiovisuais LGBTQIA+ foram suspensos, houve perseguição a peças teatrais com atrizes trans, impediram-se mostras de artes visuais e a circulação de livros pela temática queer ou, simplesmente, porque as obras traziam um beijo entre dois homens na capa.

Essa memória precisa nos ensinar alguma coisa. Já passou da hora de romper com a normalização de episódios de restrição injustificada às liberdades de criação e de expressão como os que aconteceram, há pouco, com O avesso da pele, de Jeferson Tenório e Outono de carne estranha, de Airton Souza.

Editoria com apoio do Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos

Desde 2023, o Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos apoia a cobertura especial Livros e Livres, dedicada a títulos com temática LGBTQIA+

Quem escreveu esse texto

Renan Quinalha

É professor de direito da Unifesp e autor de Movimento LGBTI+: Uma breve história do século 19 aos nossos dias (Autêntica).

Matéria publicada na edição impressa #83 em julho de 2024.