Coluna

Renan Quinalha

Livros e Livres

A vida invisível

Em belo romance, Felipe Charbel tenta dar voz ao tio que viveu no quartinho dos fundos e expõe angústia e solidão de homossexuais durante o século 20

31jul2023 | Edição #72

Como escrever a história das pessoas que poucos rastros e registros deixaram no mundo dos vivos? E das pessoas cujas existências foram tão, mas tão ordinárias, que passaram quase despercebidas? Ou, ainda, daqueles sujeitos que tiveram de esconder suas histórias dentro dos armários ou dos quartinhos dos fundos?

Essas questões atravessam o belo romance Saia da frente do meu sol, de Felipe Charbel. O livro pode ser lido como um esforço angustiado, quase de reparação emocional e histórica, de um sobrinho para dar voz à “vida minúscula” de um parente que, enquanto existiu, ninguém queria ou tentava ouvir.

A história reconstruída a partir de fotografias, restos de documentos antigos e fragmentos de memórias é a do tio Ricardo, um alguém — quase um ninguém — que viveu fora dos estreitos padrões de mais uma das tradicionais e remediadas famílias brasileiras, com seus incontornáveis conflitos, pindaíbas e reuniões de domingo.

Ele era o que se chamaria, no persistente familismo que amarra nossa formação social a um conservadorismo atávico, de um parente agregado. Aquele tio que nunca atendeu aos papéis de gênero impostos aos homens na nossa sociedade: não foi chefe de família, não se reproduziu, não foi provedor, não foi um homem forte e viril, enfim, não se tornou o centro do universo como todos os homens ambicionam e acham que merecem ser. Ele ficava às margens, longe do centro da família, guardado no quartinho dos fundos para ninguém ver.


Saia da frente do meu sol, de Felipe Charbel, pode ser lido como um esforço angustiado, quase de reparação emocional e histórica

É uma história mais comum do que parece, mas que muitas vezes nem sequer conseguimos enxergar quando acontece perto da gente. Como aconteceu com Charbel. Mas quem, afinal, não teve um tio, um primo, um irmão ou um parente LGBTQIA+ que se tornou distante porque a família expulsou de casa ou afastou do convívio e manteve a uma distância segura para preservar, no entorno, uma imagem de respeitabilidade — um tanto hipócrita — e de moralidade conservadora?

Tal figura tem seu lugar social circunscrito às sombras, ela sempre se encontra envolta em mistérios, sendo mais aceita na família quanto mais escondida está da sociedade. Ou, ainda, quanto mais “discreta e fora do meio”, como se diz hoje em dia.

Esta é a trajetória típica de homossexuais durante o século 20. Para alguém fiel a seu desejo, era forçoso tomar distância segura dos núcleos familiares e construir uma autonomia financeira para gozar da liberdade sexual longe dos olhos normalmente moralistas dos familiares das gerações anteriores.

Quem não teve um tio ou um parente LGBTQIA+ que se tornou distante porque a família expulsou de casa?

Isso quando não era necessário uma ruptura radical. Afinal, muitos acabavam expulsos de suas casas assim que as famílias desconfiavam do desejo homoerótico do parente. Para outros tantos, manter a aparência dentro de casa e preservar a discrição na vizinhança permitia acomodar a triste situação de uma vida dupla, com vivências clandestinas nos parques, saunas, praias e demais pontos de encontro e pegação entre homens nos centros urbanos.

Não à toa, como indica o livro, do tio Ricardo pouco se falava. A parcela mais interessante de sua vida, aquela vivida fora de casa, era assunto quase interditado. Dentro da casa dos parentes que o abrigavam, quase como um favor a quem não merecia, ele encenava um personagem com hábitos excêntricos, mas toleráveis, porque apagava sua sexualidade e aparecia apenas no contraturno da casa, pouco convivendo com os familiares.

Nos raros momentos em que a família transpunha o muro de indiferença construído para não tomar contato com o verdadeiro tio Ricardo, era para criticá-lo e falar mal do seu passado, tempo em que ele ainda “não tinha desistido do mundo” e ousava ostentar uma vida própria e independente: era um “puto”, um “maricón”, “uma pessoa complicada”, todas descrições mais ou menos eufemísticas que traduzem os estigmas carregados por quem ousou desafiar a ordem heteronormativa da sociedade.

Sobrevivente da geração

A situação do tio Ricardo vai se tornando ainda mais difícil na medida em que vai envelhecendo, perdendo autonomia e até mesmo os movimentos da perna ao final da vida. Se é dura a solidão de ser LGBTQIA+ em uma família que o vê como um estorvo, pior ainda é ser um idoso LGBTQIA+ incapaz de viver sem demandar o auxílio de outras pessoas.

O tema do envelhecimento de pessoas que vivem em desacordo com as normas de gênero e sexualidade é algo fundamental. A epidemia de HIV/aids exterminou uma geração delas, que foi privada de envelhecer coletivamente, como grupo. Não seria exagerado supor que vários dos “amigos” que aparecem ao lado do tio Ricardo nas interessantes fotografias estampadas no livro morreram em decorrência dessa doença, acentuando a dimensão da solidão de alguém que se tornou um sobrevivente da sua geração.

Mas quem sobreviveu, como tio Ricardo, não pôde contar com redes de apoio e de cuidado de suas famílias, nem de seus contemporâneos, para envelhecer com dignidade. Muitos tiveram de retornar aos armários que os aprisionaram na juventude e dos quais fizeram tanta força para se libertar durante a vida. Na falta de políticas públicas de assistência para esse segmento da população, só lhes resta o refúgio nos quartinhos dos fundos, lidando como possível com a solidão e as dificuldades de ser idoso e LGBTQIA+ em um mundo etarista e homotransfóbico.

Assim como fez Charbel, entre os armários, as vidas duplas, os quartinhos dos fundos, as lembranças seletivas da família e as raras fotografias — que mais escondem do que revelam —, levamos adiante a tarefa de tecer, como um tributo póstumo, não a história de parentes distantes que pertenceram a uma minoria silenciada, mas as histórias da nossa própria humanidade.

A editoria Livros e Livres, focada em títulos com temática LGBTQIA+, tem o apoio do Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos.

Editoria com apoio do Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos

Desde 2023, o Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos apoia a cobertura especial Livros e Livres, dedicada a títulos com temática LGBTQIA+

Quem escreveu esse texto

Renan Quinalha

É professor de direito da Unifesp e autor de Movimento LGBTI+: Uma breve história do século 19 aos nossos dias (Autêntica).

Matéria publicada na edição impressa #72 em julho de 2023.