Ondjaki
Deslembramentos
um piano flutuante
o cinema é um lugar mágico onde somos levados, por um indeterminado conjunto de minutos, a uma dimensão que aceitamos como paralela
24set2024 • Atualizado em: 25set2024 | Edição #86 outos filmes também são vielas onde nos perdemos com os olhos e a maresia toda sentimental e solta à espera de bailar com o desconhecido (que quase podemos lembrar) ou o conhecido dentro do peito que escapa ao entendimento racional.
parece boa ideia ver um filme e chorar. estranho é ver o filme e não saber por que se chora. “estranho é tentar explicar emoções”, dizia uma amigo meu. mas não deixa de ser intrigante.
o cinema é, a par dos livros, um lugar mágico onde nos permitimos voar. com maior ou menor permissão, retiramos a coleira ao resguardo e ao julgamento. somos levados, por um indeterminado conjunto de minutos, a uma dimensão que (não sendo) aceitamos como paralela. uma espécie de paralelismo autoconcedido.
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como nos livros: não saberemos bem explicar o que foi “aquilo tão belo” que nos aconteceu. poderemos ter ciúmes de contar. certamente iremos partilhar cenas, vivências, diálogos e instantes de um livro. experimentaremos a secreta sensação de estar a olhar para um espelho de emoções e de intimidades. desconfiaremos que a autora ou autor sabe demasiado sobre a nossa vida, hábitos, escolhas e morais.
e pode ser que tenhamos que chorar ou sorrir.
pode ser que um poema nos traga ínfima felicidade; pela simples complacência de um sorriso breve
pode ser que um poema nos traga ínfima felicidade; pela simples complacência de um sorriso breve, imaginoso. pode ser que tratemos um livro ou um poema como ‘uma das coisas mais importantes que aconteceu na vida’. e, distraídos ou não, havemos de sorrir ao usar (tão) perto da literatura o verbo ‘acontecer’.
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e a música? como não?
a música que nos entra pelo peito adentro. essa curva sinuosa que no jazz se faz tortuosa e se nos cola à pele como o orvalho da noite cobre a madrugada. o som musicado, que nos arremessa lágrimas, que pode implodir em nós um riso ou uma dança, o som que ora é tapete voador ora é bálsamo quente ora é memória e ardor.
escutamos, dançamos e, em segredo, por vezes também cantamos. tudo ao peito, ao perto, da emoção (e quantas vezes, da emoção afectiva). um lar-doce-amargo-lar feito a partir de coisas-de-ouvir.
uma celebração: um salif, uma mahalia, um tcheka, uma buika.
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tudo isto perto de (eu) ter revisto a lenda de 1900 (filme de giuseppe tornatore, de 1998), com densas interpretações de tim roth e clarence williams iii. som-musicado de nada mais nada menos do que ennio morricone). e rever, mais do que ver uma outra vez, implica ver uma segunda primeira vez. uma terceira segunda vez (noves fora os filmes muito bons que revemos vezes sem conta simplesmente porque sim).
tudo isto para poder chegar ao espelho e, com sono e ironia, poder dizer, no meu angolês, ‘não me fodas com as tentativas de explicar emoções’.
(…) agora vou ali rever um filme do abderrahmane sissako. só porque me apetece.
p_spoiller: há neste filme uma cena de duelo entre dois pianistas, mas quem ganha mesmo é a arte de filmar.
Matéria publicada na edição impressa #86 out em outubro de 2024.
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