Coluna

Ondjaki

Deslembramentos

por exemplo: o amor

diz-se que por vezes existe o amor puro, desinteressado, sem depender de estímulos ou condições. quem o terá experimentado? o camarada Jesus Cristo?

27jun2023 • Atualizado em: 11nov2024 | Edição #71

(…) a Feiticeira que acende a brasa no pote de barro, nunca há-de querer contar-nos o que sabe e nós ignoramos.

[Rimbaud, “depois do dilúvio”]

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o amor é aquilo que pode existir para quem isso fizer sentido e apetecer. a questão é por quanto tempo a equação se mantém fiel a si mesma. o “passar do tempo” é um aliado ou uma espécie de inimigo inevitável?

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o medo, por exemplo: amamos pelo medo de não sermos amados? amamos pelo que o outro ama em nós? amamos já perto da solidão de não amar? o medo é uma coisa de fora que chega perto e espreita demasiado bem, ou é algo que sempre esteve dentro, à espreita, à espera de poder espreitar e sorrir?

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temos que ter coragem de dizer que amamos quando amamos? é coragem o nome disso? com quantos gestos se pode escrever ou corrigir a palavra amor? qual a fronteira que se desenha quando o amor vive perto do desejo que mora perto do êxtase que se encosta ao alívio que foi visto com a amizade que convidou a paixão para ver se era possível reinventar o amor…?

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há uma coisa bonita quando acontece…, e quando nos acontece ter consciência dela: o amor que se esconde e nasce dentro da amizade. não tem como: é bonito mesmo. arrisco-me a pensar (e dizer) que é um amor menos complicado que aquele dos namoros. parece água límpida que se pode beber sem parar. que se pode beber sem pedir autorizações e sem requerer cuidados. dentro da amizade, o amor parece uma janela que encaixou perfeitamente no lado suave de uma casa com vista para o mar e, passados cinquenta e dois anos, quase não tem vestígios de ferrugem. (será a ferrugem a antítese do amor…?)

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outro mistério reside muito perto da palavra amor: a velhice. a última infância. esses dias onde acontece a bússola trazer apenas e apenas, todos os dias, apenas uma palavra: amanhã. de que panos podemos fazer o amor nessa cortina de fim de vida? quem está ao nosso lado? e se ainda está, e se ainda faz sentido para alguém, estar com alguém, após cinquenta e dois anos, então que tipo de amor será esse e que versos o podem cantar? existe um “amor velho”? vi nos olhos de alguns casais que existe um “amor antigo”. será velho, será sonho?…

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(nota do autor: peço licença para falar um pouquinho sobre mais um tipo específico de amor: o amor pelas coisas ao vivo. ver dança ao vivo. ver os corpos e as vozes numa peça de teatro que acontece ali, naquele instante, e não pode ser imitada ou repetida. ver as mãos tocarem o piano como se fosse a última dança daqueles dedos e daquelas teclas. e foi. o “ao-vivo” tem essa mancha linda e perigosa de só acontecer naquele instante. o eco do amor pelas “coisas ao vivo”, é o prazer de se saber disso. o sentir antes de começar. “estou prestes a ver algo ao vivo…, estou prestes a sentir a intensidade da arte ao vivo.” pode, claro, também ser uma dança casual de pássaros. um casal que passa de mãos dadas não repletos de paixão, mas de paz. há algo belo de exaltação e paz quando sabemos e sentimos o amor pelas coisas ao vivo.)

temos que ter coragem de dizer que amamos quando amamos? é coragem o nome disso?

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diz-se que por vezes existe ainda o amor puro. desinteressado. puro, portanto, no sentido em que existisse sem depender de estímulos ou condições. quem o terá experimentado? o camarada Jesus Cristo? o camarada Buda? seria amor se completamente solto de qualquer vínculo humano? ou simplesmente existir e poder agir sobre outros e sobre a natureza é, em si mesmo, uma manifestação de amor?

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como se fecha uma pequena crónica cheia de indagações sobre e perto do amor? quem sou eu, sequer, para abrir tal investigação? um atrevido, certamente; um tolo, igualmente. e o tolo lembra-se agora das palavras “ridículas” de Fernando Pessoa (As cartas de amor,/ se há amor,/ Têm de ser/ Ridículas). e o tolo pensa que é tão vasto o amor que empresta a sua leveza e intensidade a outras palavras. as cartas de amor, “quando” ridículas, tornam-se margens de sorriso, de abertura, de aceitação. o ridículo banhado de amor é apenas um instante, ao vivo, que alguém há de gostar de ter vivido. ou não.

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mas o amor, esse, estará por perto. como sempre.

Quem escreveu esse texto

Ondjaki

Poeta e escritor angolano, publicou Materiais para confecção de um espanador de tristezas (Pallas).

Matéria publicada na edição impressa #71 em maio de 2023.