Coluna

Ondjaki

Deslembramentos

manobras de apaziguamento

tive receio, a dada altura, de admitir que estava 'a ver e a sentir' as coisas do mundo de um modo que só poderia desaguar na escrita

28maio2024 - 10h43 • 28maio2024 - 16h32
Paisagem do litoral carioca na exposição Furo, 2018. Fotografia de Jordi Burch

que dias eram aqueles e que nomes poderia eu dar àqueles desconfortos da adolescência que me invadiam a garganta ou o peito como tentáculos de um polvo, escorregadio e invisível, que ora me pintava os olhos com cores por dentro para eu ver um mundo bonito

Paisagem do litoral carioca na exposição Furo, 2018. Fotografia de Jordi Burch

ora me assombrava a respiração e a madrugada

com pensamentos e sensações cuja digestão exigiu anos de lágrimas, de segredos e de aprendizagens que a própria imaginação haveria de remeter à ficção de falar e de escrever…?

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em inícios dos anos 90, uma série de eventos internos e externos haveria de me afunilar para um complicado redemoinho de sentires e sensações. era simplesmente a adolescência com os seus sinais de fogo, os seus faróis mal iluminados, os seus riachos secos com pedras pontiagudas, as suas falésias de areia e vento e maresia por perto, as suas nuvens carregadas de chumbo em cor de tarde. hoje tudo isso, no mapa dos meus dias, parece algo tão longínquo e tão árido a um tempo só. uma espécie de pequena granada antiga que as mãos, os olhos e a memória têm receio que possa rebentar de modo violento.

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como quase tudo vira ou virou literatura, por vezes tenho que me sentar na varanda da minha antiga casa (sempre a mesma…) e tentar arrumar os pedaços rasgados de um mapa que se refaz de modo diferente ao longo dos anos, das leituras dos diários, ao longo das investigações internas.

gostaria de poder apaziguar-me com esse rapaz, com as suas lágrimas, com as suas dores

o lugar de todos os nomes. o lugar de todas essas pessoas por detrás dos nomes. o lugar das memórias que ainda podem doer. o lugar da dor. o lugar do entendimento de peneirar as dores na tentativa de recriar uma catalogação. mas ao catalogar uma dor, mexemos nela?, voltamos a dar-lhe estremecimento, somos obrigados a ouvir o eco de um violino que se reafina a cada vez que é chamado a vibrar?

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talvez isso tenha vindo de antigamente. ver o mundo com os olhos da literatura. quase consigo lembrar do momento em que me foi possível aceitar que o mundo era um grande filme, uma grande exposição, uma grande janela, um vasto teatro a céu aberto, e que eu tinha “o direito” de provocar relatos, de anotar sequências, de dar rumo a um labirinto visual e psicológico que o mundo não apenas oferecia, mas também propunha como provocação, instigamento e matéria literária. algumas aptidões, aparentemente instintivas, se revelavam. tive receio, a dada altura, de admitir que estava “a ver e a sentir” as coisas do mundo de um modo que só poderia desaguar na escrita.

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em 1993, uma longa carta (escrita por mim) mudaria o rumo dos meus dias de então. deixava tantas pistas, tantos rumores, tantas entradas para um mapa afectivo e interno, que até hoje tenho receio de a reler. gostaria de poder apaziguar-me com esse rapaz, com as suas lágrimas, com as suas dores. mas eis que a dúvida brota como uma sombra gigantesca em dia de sol: em qual das pontas de uma estrela se pode tocar sem que esse susto apague os fracos brilhos que essa estrela conseguiu acumular? quem era aquela criança a escrever palavras que ainda hoje não posso reler? (ou posso?)

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cheio de vozes, ocorre-me pensar hoje. cheio de possibilidades de vozes e de ritmos. cheio de palavras. cheio de palavras que não cabiam dentro do peito. esse peito que é um lugar onde, na literatura, tudo parece caber, tudo parecer se acomodar por mais espaço que falte. esse quintal vasto dentro do peito que arde. e esse arder, aos poucos, ficante e tentacular que a criança procurava acolher e suportar, sem entender ou designar. quem era aquela criança com o peito em alerta, e as bronquites, e as ternuras, e os medos e os labirintos da imaginação? quem era aquela criança… (devo dizer…?) …que não soube pedir ajuda?

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e no entanto…, era o mundo tão simples. que me levassem ou não à casa da tia Rosa. que fossemos ou não à casa da avó Nhé. que eu fosse ou não dormir à casa da tia Tó e do tio Joaquim. que fosse ou não brincar na rua. que a escola fosse um lugar maravilhoso ou de medos. que me deixassem em paz ou não. que a mãe se sentisse bem ou não. que depois da praia me mandassem tirar o sal da pele ou não. que a segunda – feira de aulas voltasse ou fosse feriado. que as notícias da guerra fossem as mesmas ou ligeiramente diferentes. tudo isso pautado pelo mapa da vida, isto é, o mapa do ano lectivo.

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um ano antes do ano 2001, sentei-me num quarto com a missão de escrever um livro que eu menti ao editor já estar bem adiantado. “bom dia, camaradas” também mudou o ritmo interno da minha escrita. houve coisas e dores que pude dizer, houve dores e coisas que ficaram por dizer. é sempre delicado o encontro entre as verdades que gritam e as verdades que servem à literatura. fui ao mapa dos afectos, apontei com o dedo os lugares que iria frequentar e empreendi a viagem. ou talvez tenha sido um voo. saí de lá bem diferente.

escrever era real. escrever doía. lembrar doía muito.

mas é necessário sorrir com brandura e seguir. que é um modo de praticar a aceitação (dos ritmos; da vida). e é um dos caminhos para o bosque recôndito, maravilhado, a que os antigos chamam de apaziguamento.

Quem escreveu esse texto

Ondjaki

Poeta e escritor angolano, publicou Materiais para confecção de um espanador de tristezas (Pallas).