Ondjaki
Deslembramentos
lugares pouco redondos
devia haver uma palavra para esta falta de paz que a ansiedade promove. não é apenas um rebuliço. é, quiçá, algo perto de uma queimadura
23jul2024 • Atualizado em: 02ago2024 | Edição #84pensar é uma armadilha. desde sempre. já vi crianças pedirem estórias. nunca vi uma criança pedir espaço ou tempo para pensar. uma estória diverte e ensina. ‘pensar’, o mais das vezes, parece apenas trazer complicações. e hoje ‘dei comigo’ a pensar… a pensar em quê? a pensar de que modo? e que espaço havia para esse ‘pensar’?
(uma crise de ansiedade é algo absolutamente pessoal. se alguém disser “não faças uma tempestade num copo de água”, a pessoa sorri (se conseguir) dentro da sua crise de ansiedade e pensa: mas a ansiedade É uma (enorme) tempestade num copo de água. ou dentro de um peito. ou dentro de horas insuportáveis. ou dentro de algo que de fora não se vê, não se lê. a crise de ansiedade é um gigantesco castigo interno e privado. uma dor contida. um espasmo contínuo. uma corda que aperta, aperta e não sufoca. para poder sufocar um pouco mais.)
dei comigo (sorrio ao escrever esta expressão… ‘dei comigo’…) a tentar lembrar da primeira crise de ansiedade.
(ligo a tv distraidamente. está michael phelps, nadador e recordista mundial, o atleta com mais medalhas (de sempre!) nos jogos olímpicos. brinca e sorri no programa de um comediante. tem as mãos enormes e os dedos compridos. de repente, fala de depressão e de ansiedade. diz “hoje mesmo me debati com…”. o que pensa michael phelps quando nada? será que pensa? será que nada para não ter de pensar? e enquanto nada, onde quer ele chegar…?)
não sei precisar quando foi a primeira crise. creio que já havia manifestações relacionadas com isso, nos anos finais da infância. nas bermas iniciais da adolescência. uma vez, uma única vez, distraidamente, um familiar relatou-me: “lembro-me que às vezes, ao almoço, tu inspiravas e expiravas longamente”. como um suspiro que vinha sem palavras mas que falava. hoje não lembro ao certo o que queria o meu peito falar. talvez quisesse gritar. talvez se quisesse libertar de algum veneno.
(não me lembro se foi a pedido de alguém, se foi uma sugestão. uma vez tentei fazer um desenho, um rabisco, do que representava para mim a ansiedade. nalguns momentos descrevi-a como “um monstro”. não um godzilla (monstro criado por ishirō honda, em 1954, no filme com o mesmo nome), mas algo entre orangotango e uma figura humanoide, com muita força, com muita energia, que residia calmamente numa jaula aberta, no centro de uma sala ou de um quarto. e o que fazia o meu monstro? sorria. ou sorria como um louco em delírio; ou se ria da minha cara.)
o que pensa michael phelps quando nada? será que pensa? será que nada para não ter de pensar?
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estive muitos anos em conversa aberta (quer dizer, terapêutica) perto desta e de outras temáticas. fui aprendendo, na pele e com o tempo, que não seria uma “breve investigação”. é um dos modos de ir moldando a vida interior: a terapia. também se pode nadar. correr. fingir que não se passa nada. abafar. recalcar. esconder devagarinho debaixo do tapete mais próximo. ou pode-se, aos poucos, ir perguntando ao monstro se há a possibilidade de diálogo.
(certa vez, uma terapeuta perguntou-me se não era possível abrir a jaula onde o monstro vivia dentro da sala, para que ele simplesmente se fosse embora. e eu respondi à terapeuta com a mesma doçura que um dia me respondi a mim mesmo: a jaula não está fechada. tem a porta aberta.)
quanto mistério. quanta falta de paz. devia haver uma palavra para esta falta de paz que a ansiedade promove. não é exactamente um antónimo de “paz”. e não é apenas um rebuliço. é, quiçá, algo perto de uma queimadura. uma brasa contínua. uma melodia desafinada ao ponto de originar enxaqueca. uma enxaqueca de peito!, talvez.
dei comigo, no início do meu dia, a cair na armadilha de pensar. devo ter tropeçado nalguma declaração, nalguma impressão, e algo se despoletou no peito como uma mina anti-pessoal, uma granada, um lança-chamas virado para dentro. vem-me à mente, não sei porquê, um pequeno pensamento que eu tinha quando lia os livros do “demolidor”. isso foi há muitos anos, em luanda. eu era uma pessoa com perto de nove ou dez anos. adorava os livros do “surfista prateado” e do “demolidor”. o que tinham em comum?… (sorriso). talvez o olhar triste. o surfista prateado (norrin radd) vivia o drama de estar preso fora da sua galáxia. não podia regressar a casa, nem voltar, segundo dizia o livro, “aos braços da sua amada shalla-bal”. e o demolidor (matt murdock), além de justiceiro e advogado, era cego. e algo neles dois (talvez eles partilhassem uma recôndita janela de tristeza) me apontava para um lugar de paz. e eu lia, na tristezura deles, alguma paz.
(vai o sol mais longe. keith jarrett toca “köln concert part I” enquanto escrevo estas linhas. não sei se o surfista prateado conseguiu voltar a casa. não sei exactamente onde ou quando senti pela primeira vez a presença de alguma manifestação de ansiedade. vou ao sofá imaginário, encontro a criança de dez ou doze anos e sento-me ao seu lado. pergunto-lhe se sabe o que quer ser quando for grande. “quero ser feliz”, murmura. esconde o sorriso atrás da sua mão esquerda. “e o monstro?”, pergunto. “está aí na jaula aberta, mas dá pra falar com ele”, tranquiliza-me o pequeno n.)
ah!, ia-me esquecendo de contar: eu também adorava o homem-aranha (peter parker). outro discreto lacrimoso, mas muito criativo: ia dizendo piadas mesmo enquanto lutava.
lá está: cultivava estórias.
Matéria publicada na edição impressa #84 em agosto de 2024.
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