Coluna

Ondjaki

Deslembramentos

josé (e as) flores

saramago teve a delicadeza de procurar acertar o que ia enunciando àquilo que o mundo precisava que se dissesse: tomo isso como um sinal de integridade e de coragem

23out2024 | Edição #87 nov

se há coisas bonitas no nosso mundo são as flores. o modo como as lemos varia de pessoa para pessoa. de olhar para olhar.

outra das coisas mais bonitas do mundo são as crianças. e os velhos. as suas texturas, as suas mãos e as flores nos seus olhares.

Bonjour Tristesse, Berlim. Fotografia de Jordi Burch

há um vértice metafísico onde se dá o encontro destas coisas e destas pessoas. destas mãos. esse vértice, profundo, misterioso, múltiplo e vasto, reside numa palavra: “palavra”.

a palavra é o grande quintal onde as pessoas se sentam para exercitar a humanidade.

nesse quintal, sentados, desatentos, desumanos, bélicos, as pessoas fazem uso da palavra para forçar um sonho, para construir e materializar uma ideia, para inventar guerras. raras vezes usam a palavra para alimentar o sonho de compreender o outro. ou de praticar a aceitação.

distraídos que andavam a “fazer o mundo”, os seres humanos caíram na armadilha de inventar o objecto “livro”. foi, talvez, a mais complexa armadilha à escala do nosso universo: era composto de teias invisíveis, convocava armas “carregadas de futuro”, expunha materiais tão explosivos quanto a imaginação, o desejo, o sonho, a frustração, o brilho, as intensidades, o espelho, a vastidão, a contenção. sempre foi uma arma de vários gumes, exigia perícia no fabrico e manuseamento, e uma redobrada atenção e sensibilidade do ponto de vista de quem a recebia. os livros estão cheios, digamos assim, de palavras perigosas.

nascia o território amplo de uma série de factos que se combinavam para dizer algo ou quase nada. continha, o livro, essas pequenas maravilhas de contar e de lembrar: chamaram-lhes “contos”. e, não raro, o objecto-livro contém longos manifestos de loucura, desenfreada e lírica, a que se chamou “poesia”. e nunca mais a humanidade seria a mesma.

ler era também experimentar a vida outra vez. ler e lembrar: não como exercício de memorização mas como experimentação de um futuro ou de um passado que não tinha lugar exacto de acontecer. porque acontecia em nós. porque acontecia fora do tempo regular do sol e da lua.

a palavra é o grande quintal onde as pessoas se sentam para exercitar a humanidade

há escritores que chegam a esse mérito de desafiar os ciclos. de reescrever os códigos habituais porque, dentro deles, novas combinações humanas se revelaram. estão dotados da generosidade ou o génio de nos fazerem chegar esses materiais.

escreve-se pintando. escreve-se fazendo. escreve-se até mediante formas efémeras que dependem dos olhos de quem está no lugar. mas é bem verdade que também se escreve com a articulação intencional de palavras e ideias.

josé saramago, parece-me, conseguiu conciliar a crença com a tranquilidade. soube escolher o caminho da observação e do discurso. aproximou urgências a uma estética literária muito potente, singular e sua. teve esse dom, ou escolha, de optar pela coragem de dizer o que pensava e de repensar o que antes se havia solidificado. teve a delicadeza de procurar acertar o que ia enunciando àquilo que o mundo precisava que se dissesse. tomo isso como um sinal de integridade e de coragem: há momentos em que o falar político se cruza com o falar literário do autor. ou, talvez: há momentos em que tudo em nós é político ou é literário e o resultado disso é um discurso uno que nasce da urgência de comunicar, de dizer, de estar no mundo usando o exercício da palavra. de quantos autores ou pessoas poderemos dizer o mesmo…?

lembro-me de um personagem de um livro da minha infância. tinha, esse homem, o dom de fazer hipnose colectiva. indagado sobre essa habilidade, respondeu: “é preciso acreditar na invisibilidade”. espantado, o interlocutor quis saber se isso resultava; se, no meio de uma multidão, todos acreditavam nisso, permitindo-lhe assim passar despercebido ou invisível. ao que mandrake respondeu: “não são os outros. és tu que tens que acreditar. e depois seguir em frente”.

crer. acreditar. ter crença. palavras difíceis e também de perigoso manuseamento.

acreditar em si. tanto quanto a semente espera a chuva para avançar. seguir em frente: eclodir. confecionar a minúscula mudança que o mundo espera de cada semente.

há livros que são como sementes. em vez de os regarmos, podemos bebê-los.

há livros que fizeram um inimaginável trajecto: fogem do concrecto para o abstracto humano; saem do estado de planta para regressar ao início das coisas; “regridem” para o estágio de semente. mas retrocedem em direcção ao futuro: como flores misteriosas.

há flores que estão em todo o lado à espera de uma colisão: um gesto que seja de olhar ou incorporar. essas flores chamam-se livros. chamam-se sementes. e vice inversa.

mas também existem pessoas-flor. eu creio que uma das flores mais bonitas do mundo se chama josé saramago. 

Quem escreveu esse texto

Ondjaki

Poeta e escritor angolano, publicou Materiais para confecção de um espanador de tristezas (Pallas).

Matéria publicada na edição impressa #87 nov em novembro de 2024.

Para ler este texto, é preciso assinar a Quatro Cinco Um

Chegou a hora de
fazer a sua assinatura

Escolha como você quer ler a Quatro Cinco Um.

Faça uma assinatura anual com até 56% de desconto e ganhe uma ecobag exclusiva!

Entre para a nossa comunidade de leitores e contribua com o jornalismo independente de livros.