Coluna

Ondjaki

Deslembramentos

cultivar novos fascínios

aprendemos contigo a ler a delicadeza de algumas poesias e a intuir as pistas que deixas como referência para importantes leituras africanas

28nov2023 | Edição #76

querida paula tavares,

espero-te bem, com as horas de sono resolvidas e algum tempo para olhar as árvores e as flores.

escrevo desde longe, da cidade de Addis Abeba, a “nova flor” já tão antiga e, daqui, por mais que me esforçasse em pensar num texto colorido para ti, apenas pequenos haicais de silêncio me eram devolvidos pela madrugada;

mas, como se diz agora em Luanda, “não estragou nada!”: o que venho mesmo deixar são palavras simples de agradecimento. porque mereces, porque te dizem poucas vezes; e porque não há razão para não dizermos estas coisas boas às pessoas que andam há anos a ser como são.

nós que somos os teus filhos, os teus sobrinhos, as tuas jovens angolanas, as flores que ainda podem ou sabem sorrir, nós que aprendemos contigo, e que te lemos, nós que aprendemos a ler devagar as coisas que dirias para serem entendidas anos depois, nós que te vamos lendo não apenas em palavras mas também em meneios, nós que conhecemos os teus gestos silenciosos e eficazes, nós que descobrimos o amor pelos livros e o amor dentro do amor por causa das coisas que nos indicaste para ler, 

nós que sonhamos depois de vocês, que procurámos seguir o vosso exemplo e darmo-nos quando somos chamados a isso, nós que te ouvimos ler lindamente o poema de Craveirinha:

tenho que arder na exploração/ arder até às cinzas da/ maldição/ arder vivo como alcatrão, meu irmão,/ até não ser mais a tua mina,/ patrão./ Eu sou carvão 

nós que, por alguma razão, já chorámos no teu ombro, e nós que também já somos de antigamente nesse antigamente dos anos 80 (nossas malambas, nossos cartões da loja do povo…), nossos antigamentes mestiçados numa espécie de Luanda, outra ou a mesma

obrigado pela poesia, pela delicadeza, pelo sentido de justiça; pela preocupação com a integridade

intrigante, majestosa, suja, doce, kizombada, poeirenta, musical, preguiçosa, étnica, sofrida, zungada, militar, amada, abandonada, dançável

nós as crianças desses anos 80 a ignorarmos que éramos também privilegiados só que nem sabíamos; nós que aprendemos contigo a ler a delicadeza de algumas poesias e a intuir as pistas que deixas como referência para importantes leituras africanas;

a nós que somos os teus filhos e sobrinhos cumpre agradecer!,

com palavras simples ou um gesto onde o olhar reclinado provoca um sorriso simples em nós e em ti;

te agradecemos com as mãos junto ao peito: não porque tenhas feito mais do que devias, mas porque ao longo de todos estes anos, os mais difíceis, e mesmo durante os menos difíceis, nunca te permitiste fazer ou ensinar menos do que aquilo que podias.

te agradecemos, digamos, como um grupo de alunos agradece a uma professora; ou um grupo de discípulos agradece a uma, um mestre.

obrigado pela poesia, pela delicadeza, pelo sentido de justiça; pela preocupação com a integridade; pelo esforço por ti feito como fazem todas, todas as mulheres angolanas que desejam manter-se na margem certa do que é a possível dignidade nos tempos mais duros da vida e das guerras de cada uma.

termino esta missiva com as palavras do ruy duarte de carvalho: 

porque sempre assim me aconteceu desde garoto/ abismado face ao desconhecido que se desenrolava à minha frente, razão bastante para cultivar fascínios 

obrigado, paula, por sempre teres conseguido nos cativar e nos cultivar sempre tão perto de novos fascínios. o “fio fino da ternura” passa por ti e move-se. obrigado: parte do nosso futuro começou com pessoas como tu.

teu, 

ondjaki. 

Quem escreveu esse texto

Ondjaki

Poeta e escritor angolano, publicou Materiais para confecção de um espanador de tristezas (Pallas).

Matéria publicada na edição impressa #76 em novembro de 2023.